Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Pesquisa da FGV destaca ‘otimismo’ do brasileiro

Inexpressiva repercussão mereceu nos jornais a divulgação (terça-feira, 2/9), pelo centro de políticas sociais da Fundação Getúlio Vargas, de uma pesquisa internacional, envolvendo 132 países. A matéria parece haver atraído mais os portais de notícias online que propriamente o noticiário impresso. Com o intuito de melhor situar o leitor do Observatório que porventura não tenha tomado ciência dos resultados da pesquisa, reproduzo, a seguir, trechos da matéria, assinada por Juliana Castro, que, em 2/9, ocupou espaço na página da UOL: ‘[A pesquisa] mostra que o brasileiro é o povo mais confiante em como estará sua situação daqui a cinco anos.’ Antes, cabe esclarecer que a pesquisa foi assim orientada:

‘Numa escala de 0 a 10, o ícone da felicidade futura da população brasileira atinge o topo da pesquisa com 8,78, à frente de Venezuela (8,52) e até mesmo da Dinamarca (8,51). China, Rússia e Índia, países que, com o Brasil, formam os chamados BRICs (grupo dos países considerados os quatro principais emergentes), ficaram para trás no estudo. Os piores são Zimbábue (4,04), Camboja (4,86) e Paraguai (5,04).

A pesquisa foi dividida entre a população de uma forma geral e um outro levantamento feito entre jovens de 15 a 29 anos. Neste último grupo estão os mais otimistas em relação ao futuro do Brasil. O índice nessa faixa etária atinge 9,29, à frente dos Estados Unidos (9,11) e Venezuela (8,87). Os piores do ranking são Zimbábue (4,68), Haiti (5,18) e Camboja (5,37).

O questionário, com perguntas objetivas e subjetivas iguais para todas as nações, foi aplicado pelo instituto Gallup a 150 mil pessoas de 132 países. A FGV trabalhou com os dados da pesquisa para estudar as perspectivas de felicidade do brasileiro.’

O lado obscuro das ‘pesquisas’

Leitores que, por acaso, há algum tempo acompanhem este articulista já sabem o que efetivamente penso a respeito das tais ‘pesquisas por amostragem’. Em algum artigo do passado, sei haver usado o neologismo ‘amonstragem’. Para começar, o texto não é claro: o Instituto Gallup fez a sondagem com o total de ‘150 mil pessoas’, no total de 132 países, ou foram sondadas 150 mil pessoas em cada um dos 132 países? Se a primeira indagação for a correta, deduz-se que, de cada país, foram selecionados 1.136 habitantes. Em havendo sido a segunda opção, terão sido consultadas 19 milhões e 800 mil cidadãos do mundo. Sinceramente, não sei qual dos dois recortes é mais ficcional do que o outro.

Na primeira possibilidade, levando-se em conta o Brasil, conclui-se que 150 mil vozes traduzem o sentimento de 190 milhões de habitantes. Em sendo o segundo, arredondando, 20 milhões de seres no mundo refletem a avaliação de bilhões de seres, tão diferenciados entre si. Por favor, ‘sociólogos de campo’ não aviltem tanto a inteligência média daqueles que sabem a diferença entre ‘metodologia científica’ e ‘pesquisa científica’. O adjetivo é o mesmo. Contudo, o que interessa (substância) é que o substantivo não é igual. Em outros termos, vale dizer que a ‘metodologia’ pode ser científica. O resultado, porém, não o é.

Qual é o problema maior? A mídia, principalmente na sua modalidade jornalística, deveria exercer o papel de real ‘mediador’ entre o fato e o público. Se, entretanto, ela apenas o repassa, o público finda como refém do que lhe é informado, cabendo a consciências inquietas e atentas a tarefa de filtragem e avaliação própria.

Pesquisa e eleições

É reconhecida (e de longa data) a seriedade da Fundação Getúlio Vargas. A autenticação, todavia, não impede que, circunstancialmente, por algum fator episódico, altere o que é a solidez de um perfil histórico. O que criticamente sinalizo provém das declarações do coordenador, Marcelo Néri, que, à luz dos resultados da ‘pesquisa’, assim se pronunciou:

‘Segundo o economista da FGV e coordenador do estudo, Marcelo Neri, dois fatores contribuíram para essa visão otimista do brasileiro: a renda do trabalho do jovem, que teve acréscimo de 10,5% ao ano entre 2004 e 2008, além do aumento dos anos de estudo – de 9,7 em 2004 para 10,4 em 2008.

O que a pesquisa mostra é que, dos últimos 16 anos, os 12 anos iniciais foram de estagnação trabalhista, mas o jovem estava indo à escola e investindo no seu futuro, embora não tivesse colhendo esses resultados no mercado de trabalho. De 2004 em diante, já muda. `O jovem continua investindo em educação, mas começa a colher resultados´, disse Néri, explicando um dos fatores de otimismo dos jovens’.

Em nenhum nível estou insinuando o fato de as declarações do coordenador serem falsas. Ele, com base nos dados da pesquisa, busca elucidar as razões. O que apenas pretendo pontuar é a pertinência da pesquisa e sua divulgação a um mês das eleições municipais. Enfim, o problema não diz respeito à coordenação da pesquisa, e sim, a esferas superiores. As declarações dadas pelo coordenador favorecem (é inegável) a atuação do governo federal. Basta que se leia com isenção. A questão é: em que nível a avaliação positiva do governo federal reverbera nas candidaturas municipais que recebem apoio ideológico, fisiológico ou funcional (via coligações)?

Explorando, com mais acuidade os mesmos resultados da ‘pesquisa’, pode-se verificar um certo descompasso entre os resultados, quase uma ‘avaliação-esquizo’. Observemos o seguinte quadro, conforme a matéria citada: ‘O brasileiro é o povo mais confiante em como estará sua situação daqui a cinco anos.’

‘Se a confiança do brasileiro no futuro é grande, no presente o otimismo é mais reduzido. Com o 52º PIB per capita (PPP) do mundo, ficamos na 22ª posição no ranking da felicidade presente de toda a população (6,77). A pesquisa mostrou que os países com maior PPP, como nações européias, Estados Unidos e Austrália, são os que possuem maior felicidade presente. Neste quesito, o povo mais satisfeito do mundo é o dinamarquês (8,02). Entre os jovens, Israel é a nação líder da pesquisa.’

Presente (real) x futuro (ideal)

A análise dos dados da tal ‘pesquisa’ deixa no ar uma questão: em relação ao futuro, o segmento brasileiro consultado é o primeiro colocado. No tocante, contudo, ao presente, os consultados levaram o país à 22ª posição. Bem, o que se pode deduzir é que, entre o real e o ideal, persiste considerável abismo. Por outro lado, sem querer ‘ideologizar a questão’ – o propósito é apenas o de refrear qualquer possibilidade de mistificação –, minha experiência diária com jovens, fruto do convívio com alunos universitários, dá conta de muitos jovens sem nenhum emprego e outros tantos empregados com salários minguados, porém radicalmente distanciados daquilo que gostariam de fazer. Esse dado que a ‘pesquisa’ não contempla fornece, talvez, a compreensão mais ampla de um quadro no qual o componente da ‘frustração’ possa ser mascarado pelo investimento radical de nossa primeira colocação no ranking do otimismo.

A história da civilização é bastante reveladora quanto ao fato de que o vislumbre da ‘utopia’ serve como ‘formulação narcotizante’ para suportar as vicissitudes impostas pela vivência do cotidiano. Fugas imaginárias sempre existiram. Escapismo, desde certa geração romântica do século 19, se tornou uma expressão estética. Afinal, se a realidade presente é frustrante, por que não imaginar a construção do futuro como um cenário inebriante?

É lamentável, pois, que a atividade jornalística tenha desprezado resultados de uma pesquisa na qual tantos aspectos históricos, políticos, econômicos e culturais poderiam engendrar enfoques enriquecedores para a expansão reflexiva de leitores. Ao contrário, o jornalismo dominante optou, mais uma vez, por mero registro de uma ‘pesquisa’. Cabe, todavia, lembrar outras tantas ‘pesquisas’ nas quais o brasileiro figura como: 1) maior consumidor de cocaína; 2) segundo colocado no uso do Orkut; 3) um dos mais usuários da telefonia celular; 3) o que mais consome, por média semanal, horas de televisão; 4) e, agora, o que lidera, em otimismo, a conquista da felicidade. Que tal, o brasileiro começar a identificar a diferença semântica entre as palavras ‘esperança’ e ‘expectativa’? Uma é com ‘s’; outra é com ‘x’. Qual é o ‘x’ da questão?

Para responder à formulação proposta no parágrafo anterior, é indispensável que o remetente se desarme quanto às contaminações de tudo aquilo que diz respeito aos seguintes conceitos: mitificação/ mistificação/ massificação. Como desfecho, deixo a sentença do pensador francês, Edgar Morin: ‘Foi uma verdadeira crise da idéia de felicidade, que é a grande mitologia da sociedade ocidental’ (Folha de S.Paulo – 28/04/08). Traduzindo a frase de Morin, ‘felicidade’ é uma invenção do Ocidente. Quem sabe, bem antes de Morin, lembrar Freud com o conceito de ‘mal-estar’? Pelo atalho de Freud, pode-se, varrendo do imaginário as concepções de ‘felicidade’ e de ‘progresso’, ficar, apenas, com as idéias de ‘bem-estar’ e de ‘distribuição’? Quem trilhar pelo caminho de Freud (e puder ignorar resultados de algumas pesquisas) logo concluirá que o ‘princípio de realidade’ deve sobrepor-se ao ‘conceito de idealdade’.

Alerta necessário

No mais, especificamente em relação aos eleitores do Rio de Janeiro, sinto-me no dever de registrar que qualquer escolha majoritária deve ser respeitada. Todavia, eu sentiria um frio na espinha se a preferência do eleitorado consagrasse a vitória de um representante das hostes religiosas. Ao proferir tal sentença clara, tento, na condição de simples cidadão que tem voz, alertar, em nome da preservação da democracia, o perigo de alimentar-se a progressão de um Estado religioso, em detrimento de um Estado laico. A pergunta é simples: há algum rabino candidato? Há algum cardeal católico candidato? Há algum profeta, escolhido por Maomé, candidato? Para as três perguntas, a realidade responde com um ‘não’.

É legítimo que cada ramificação religiosa tenha suas preferências? Sim. Será legítimo que uma seita religiosa oficialize a candidatura, para eleições majoritárias? Para tanto, deixo claro que o problema não é de ordem pessoal. Igualmente, não é por razões partidárias: a questão de fundo é a defesa intransigente da existência de um Estado laico. Qualquer ramificação religiosa tem o direito de apoiar seus candidatos. Tal situação não é igual a uma ramificação religiosa expor, como representante público, alguém que ostenta, na sua biografia, a filiação e a ‘titulação’ de ordem religiosa.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro, RJ)