Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Plínio Bortolotti

‘Em um espaço de 11 dias, O Povo deu duas manchetes de Primeira Página para um homem de 20 anos, Ednaldo Evangelista da Cunha, conhecido pelo apelido que foi a antítese de sua curta e violenta vida: ‘Mel’, pois assim insistiam nomeá-lo nas manchetes e textos os jornais, algumas vezes rimando com ‘Kel’, como era chamado o seu ‘comparsa’ Zaquel Rodrigues de Souza. A primeira vez em que os dois foram parar na capa do jornal foi em um domingo: ‘Dupla bandida – Polícia prende Kel e fecha cerco a Mel’ (18/3); a outra foi para anunciar a morte de Ednaldo: ‘Morto bandido mais caçado pela polícia’ (quinta-feira, 29/3), seguindo-se o texto: ‘Terminou ontem a trajetória do bandido mais procurado do Ceará. O assaltante e latrocida Ednaldo Evangelista da Cunha, o Mel, foi morto após tiroteio com policiais no município de Canindé. Segundo a Polícia, Mel teria reagido a uma ordem de prisão’.

Ednaldo Evangelista ‘não era santo’, como reconheceu a própria mãe dele aos jornais, praticou crimes e a polícia tinha a obrigação de procurá-lo e prendê-lo – atuando nos marcos legais – para submetê-lo à Justiça. Mas, acompanhando a trajetória e a forma como a ‘periculosidade’ dele foi sendo construída pela polícia, com a conivência e ajuda dos jornais e dos programas televisivos especializados em notícias policiais, há muita coisa a ser questionada. Em dezembro do ano passado comecei a notar que a Ednaldo Evangelista era atribuída uma série de crimes, tendo as referências a ele começado em julho, quando foi acusado de matar um policial.

Na edição de 14/12/2006 relatava-se um seqüestro relâmpago em que a vítima supostamente o reconhecia. A matéria anotava: ‘Na delegacia, a vítima disse que dois dos bandidos eram semelhantes aos procurados Mel e Kel, tidos como matadores de policiais. (…) No entanto, ele disse que não poderia garantir que se tratava do bando de Mel, porque perdeu os óculos no momento da abordagem’. Escrevi no comentário interno do dia: ‘Parece meio exagerado um sujeito que é seqüestrado de noite, perde os óculos, passa momentos de ‘tensão e horror nas mãos de seqüestradores’ e ainda consegue reconhecer seus captores. Fica a impressão que a polícia quer dar algum tipo de justificativa por antecedência’.

Na edição de 16/12/2006, novo crime foi atribuído à ‘quadrilha de Mel e Kel’, um assalto, no qual dois suspeitos foram mortos pela polícia. Escrevi, na ocasião, na crítica interna: ‘O jornal torna a reproduzir as declarações policiais de forma acrítica. Por que, seguidamente, a polícia tenta imputar-lhes crimes, sem nenhuma prova, apenas ‘por conta da área de atuação’ e o modo como os dois assaltantes mortos ‘abordaram a vítima’? A partir desses dados, os criminosos passaram a ser, automaticamente, da ‘quadrilha de Mel e Kel’. Posso estar enganado, mas me arrisco a perguntar: será que o destino dos dois já não está traçado e o jornal está contribuindo para justificar a ação futura dos policiais?’ Na ocasião, a Ednaldo Evangelista eram atribuídos o assassinato de quatro policiais, diversos assaltos e roubos seguidos de morte. Virou personagem nos programas policiais de rádio e TV e as matérias se sucediam nos jornais. A polícia inflava seus feitos e os meios de comunicação reproduziam despreocupadamente as declarações oficiais.

Esse modelo é conhecido por quem se dedica a estudar o assunto ou a observar os sinais e as entrelinhas das notícias publicadas. Documento do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes (Rio) aborda a questão da seguinte maneira: ‘A atribuição de ‘inimigo número 1’ da sociedade a um bandido também pode contribuir para valorizar o delinqüente. A escolha de um personagem como símbolo do fenômeno da criminalidade desperta o interesse do leitor e aumenta a venda dos jornais’. (E a audiência dos programas de rádio e TV, pode-se acrescentar.)

O estudo reproduz declaração da inspetora Marina Magessi (atualmente deputada federal), que chefiou a Delegacia de Repressão aos Entorpecentes da Polícia Civil fluminense. Ela diz o seguinte: ‘Quando a autoridade chama o jornalista e fala ‘esse bandido aqui é o número 1’, já está pensando: ‘Ele está quase na mão; se eu prendo, viro estrela, chefe de polícia, ganho uma delegacia muito boa’. É assim que funciona’. Em decorrência, a criação do mito ‘atende também aos fins da polícia’, diz o Cesec. Portanto, saber quais são esses fins também seria o trabalho do repórter. Ou, pelo menos, se não souber quais são ou desconfiar deles, recusar-se a dar ajuda à polícia para alcançá-los.

Não faço a crítica para negar a importância do trabalho da polícia pela segurança dos cidadãos. Mas, com essa fórmula, todos perdem, inclusive a polícia. Promove-se um bandido a estrela de jornal e TV, romantizando-lhe a vida ou dando-lhe importância descabida, reproduzindo o mau exemplo e aumentando a sensação de insegurança. Quando ele é preso ou morto, há como que uma catarse, pois a população acuada pela gritaria da imprensa pensa que o problema foi resolvido. Aí, o ciclo recomeça, certamente vai aparecer um novo ‘Mel’, pois já houve um ‘Fernando da Gata’, como lembrou o experiente repórter Landry Pedrosa em artigo publicado na edição de sexta-feira.

O confronto

Sobre o confronto que levou à morte de Ednaldo Evangelista, os três jornais O Povo, Diário do Nordeste e O Estado, afirmaram que houve ‘tiroteio’, mas nenhum deles acompanhou a ação policial. O Diário do Nordeste assinalou, sem revelar como obteve a informação: ‘Mel morreu como prometeu aos seus comparsas: jamais se entregar vivo à polícia’. Em matéria mais equilibrada, na sexta-feira, O Povo informou que Ednaldo teria disparado uma única vez, tendo levado um tiro na cabeça e outro nas costas. O único jornal a informar que foram apenas quatro policiais a participarem da ação contra ‘o bandido mais procurado e mais perigoso do Ceará’, que já tinha fugido de ‘10 cercos policiais’ foi o jornal O Estado.

Ombudsman no rádio

Amanhã, às 9h50min inauguro intervenção, que será semanal, no programa Rádio Serviço, na Rádio O Povo/CBN. Vou falar no programa apresentado por Nonato Albuquerque, sob a coordenação de Maryllenne Freitas, com o objetivo de divulgar o trabalho do ombudsman. De minha parte, já terei ganhado muito se conseguir ser um bom aprendiz de ambos.’