Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Polêmicas futebolísticas ou polêmicas da imprensa?

No ano passado, durante a primeira partida válida pela fase semifinal da Copa do Brasil, no estádio Mário Filho, houve um pênalti. O goleiro defendeu e o árbitro Paulo César de Oliveira invalidou a defesa, mandando ser refeita a cobrança; na nova cobrança, o jogador fez o gol. Ao longo dos dias seguintes, após a reprise mostrar inequivocamente que o goleiro tinha efetivamente se adiantado de maneira irregular na primeira cobrança (e que, portanto, cabia ao árbitro mandar refazer a cobrança, tal como ocorreu), a grande maioria dos jornalistas esportivos atacou duramente o árbitro, embora todos, de maneira unânime, reconhecessem que o goleiro tinha se adiantado e feito irregularmente a defesa.

Nenhum dos jornalistas especialistas tinha dúvidas sobre o assunto, nenhum deles questionava que o goleiro tinha defendido a cobrança de forma irregular e que o árbitro tinha cumprido o que estava claramente estabelecido na regra. Nenhum dos comentaristas especialistas criticava o juiz por ter errado, por ter descumprido ou por não ter cumprido a regra do futebol. Eles o criticaram – durante muitos dias e de forma muito contundente – precisamente por ter sido ‘rigoroso demais no cumprimento da regra’, como se esse pretenso rigor tivesse prejudicado o time do goleiro que infringiu a regra. Alguns desses jornalistas, especialistas em futebol, inclusive disseram considerar a cobrança de pênalti muito ‘cruel’ com o goleiro: assim, eles defendiam que, por isso – por causa de seu sentimento (de compaixão?) referente ao goleiro na cobrança de pênalti – o árbitro deveria dar um jeitinho no (des)cumprimento da regra.

‘Rigor exagerado’

Aqueles jornalistas, inclusive, usaram o que ocorreu naquela mesma semana, numa decisão por pênaltis na final de um torneio europeu, em que o árbitro europeu não mandou refazer as cobranças em que o goleiro se adiantou. Eles elogiaram os erros do árbitro europeu na tentativa de conferir credibilidade aos seus ataques contra o árbitro brasileiro por acertar e cumprir a regra. O árbitro europeu, disseram esses jornalistas esportivos, errou e por isso merecia parabéns; o árbitro brasileiro acertou e por isso mereceu críticas e ataques.

Nem deveria ser preciso acrescentar qualquer observação sobre esse assunto. Primeiro: os supostos e pretensos especialistas alegadamente defendiam que a regra fosse descumprida para beneficiar o ‘coitadinho’ do goleiro – o que, embora seja absurdo, era o que foi ostensivamente alegado pelos ditos comentaristas (cabe repetir, durante vários dias e de forma contundente contra o árbitro). ‘O goleiro se adiantou apenas alguns centímetros’, disseram os jornalistas que criticaram a decisão do árbitro. Todos sabem que a regra proíbe se adiantar – sem ‘apenas’ –, de modo que o próprio enunciado da crítica evidencia sua inconsistência.

Quem não tivesse visto o lance e apenas ouvisse os ataques violentos dos jornalistas, pensaria que se tratavam de dois, três ou cinco centímetros, e não de bem mais de cinqüenta centímetros, totalmente visível na reprise do lance. O ‘rigor exagerado’ do árbitro não foi nada perto do exagero na linguagem dos críticos ao falarem em ‘apenas pouco centímetros’ quando se tratava de mais de meio metro.

Relativismo imoral

Segundo, e talvez o mais importante: que exemplo de cidadania o desses jornalistas – a lei, apregoam eles, deve ser cumprida ou descumprida de acordo com suas vontades e simpatias ou antipatias. ‘O árbitro está certo e cumpriu a regra, mas não é porque ele está certo que ele devia ter cumprido a regra.’ Isso é que é relativismo imoral. E esse relativismo imoral procurou vitimar aquele árbitro de futebol, não por ele ter cometido um erro ou ter descumprido a regra, mas pelo contrário: ele foi julgado e condenado culpado por ter acertado e cumprido a regra. Kafka ou Orwell ou uma combinação de ambos? Bem-vindo ao Admirável Mundo Novo dos jornalistas esportivos brasileiros.

Foi bastante comentado durante a semana passada: domingo retrasado, dia 8, no Mineirão, o árbitro acertou e cumpriu a regra ao marcar uma irregularidade do goleiro do time visitante. A irregularidade foi punida com uma cobrança indireta dentro da grande área que gerou o gol da vitória do time mandante de campo. Novamente, grande parte da imprensa esportiva criticou o árbitro, reconhecendo que ele cumpriu a regra.

‘O árbitro tem razão no que ele marcou, mas ele devia ter tido o bom senso de não marcar’: ele devia ter o bom senso de não ter razão? Então, esses jornalistas esportivos têm bom senso porque não têm razão? O relativismo imoral é menos relativo do que é imoral. É o regresso ao universo huxleyano.

‘Evitar a polêmica’

O que talvez seja mais admirável, de todos os absurdos cometidos por esses comentaristas, é que eles atacam o árbitro como sendo o responsável por provocar a polêmica. Mas quem efetivamente causou a suposta polêmica foi o árbitro ao acertar e cumprir a regra ou foram eles, os jornalistas esportivos? Na formulação desses jornalistas, o árbitro não apenas é condenado por acertar e cumprir a regra, mas também é culpado pelas tolices ditas pelos comentaristas que o criticam. ‘Estamos aqui gastando nosso tempo de jornalistas discutindo a marcação do árbitro; se ele não tivesse marcado a falta, não gastaríamos tanto tempo discutindo o lance’, vituperaram, em tom indignado: assim, o árbitro deveria marcar ou não marcar os lances conforme a marcação irá desperdiçar ou não o tempo dos jornalistas de futebol, é o que foi dito e repetido por alguns desses comentaristas que não só dizem tolices como ainda e também são presunçosos.

O árbitro acertou, cumpriu a regra e fim: qualquer polêmica posterior, evidentemente não pode ser decorrência do acerto e do cumprimento da regra por parte do árbitro. É possível concordar, finalmente, com esses jornalistas: quem causou a polêmica merece severas críticas. Mas a origem das admiráveis polêmicas precisa ser imputada àqueles que efetivamente as provocaram.

Os jornalistas que criticaram o árbitro reconheceram que o espírito da regra (‘do legislador’, como eles gostaram de repetir) é coibir e punir que o goleiro retivesse a bola em demasia e admitem que o goleiro efetivamente fez isso no lance em questão, de modo que o árbitro puniu a ‘cera’ feita pelo goleiro. Apesar disso, censuraram o árbitro: ‘era melhor ele não ter marcado para evitar a polêmica’.

Destempero do crítico

‘Se fosse uma defesa em dois tempos e o goleiro fizesse aquilo, ele marcaria?’; ‘se fosse uma bola rebatida e o goleiro fizesse aquilo, ele teria coragem de marcar?’, perguntaram os jornalistas, de modo desafiador e em tom de triunfo, aparentemente incapazes de perceber que a pergunta já mostrava a diferença: não se tratava de uma defesa em dois tempos nem de um rebote. Se fosse diferente, não teria sido o que foi. O juiz cumpriu a regra marcando a falta (os jornalistas admitem isso); ‘se fosse um lance diferente do que foi, se fosse um lance em que o goleiro não infringisse a regra, o juiz não teria marcado falta’ é, no máximo, um truísmo, assim como aquelas perguntas são marcadas por truísmos que nada revelam a não ser a incapacidade dos tais jornalistas formularem uma argumentação minimamente ponderada. Compreendidas literalmente, aquelas perguntas significam: ‘se o lance fosse diferente, de maneira que o goleiro não tivesse infringido a regra, o árbitro marcaria infração à regra?’ Não acrescentam nada, pragmaticamente, à discussão sobre o lance efetivo (mas não há discussão pragmática do lance efetivo). Mera retórica de revolta contra a razão?

Revolta contra a razão: um desses jornalistas repreendeu o árbitro por esse, ainda por cima, ter sido imprudente ao marcar aquela falta justamente no último minuto da partida – de modo que o gol decorrente da cobrança da falta teria sido o lance final da partida. Corrigido por seus colegas – todos irmanados nas afrontas ao árbitro – de que o lance ocorrera na metade do segundo tempo, de forma que a partida durou mais de vinte minutos após o gol, o jornalista disse duas frases: ‘não importa em que momento da partida ocorreu o lance’ (mas importava muito para ele até quinze segundos antes, quando ele achava, não se sabe por que, que tinha sido no minuto final da partida) e ‘eu não assisti a partida’ (observação completamente tardia), dito com a voz hesitante, aparentemente em dúvida se isso era mesmo um argumento a favor dele próprio. Tudo evidencia o destempero do crítico ao se locupletar na reprimenda ao árbitro.

Pretensas ironias

Qualquer discussão decorrente do lance marcado pelo árbitro não deveria ser uma pretensa polêmica a propósito do árbitro (afinal, todos na imprensa concordam que ele cumpriu a regra). Uma discussão pertinente poderia ser sobre o desconhecimento de jogadores e de treinadores referente às regras (treinador e jogadores criticaram o árbitro da partida no Mineirão por ignorar a regra; os jornalistas que o criticaram reconheceram que o árbitro conhecia a regra e a aplicou corretamente). Outra discussão, mais relevante, seria sobre o despreparo, evidenciado com freqüência, de grande parte da imprensa tida especializada – mas a meta-crítica parece ser impossível ou porque certamente o despreparo não permite a crítica ao despreparo ou porque uma pequena parte da imprensa especializada parece não poder ultrapassar o que seria considerado o limite do corporativismo ao discordar de seus colegas.

Na partida no ano passado, a credibilidade dos ataques ao árbitro foi feita pela comparação com o árbitro europeu. Desta vez, pretendeu-se que a credibilidade dos ataques da imprensa esportiva fosse construída de forma interna. ‘O árbitro pode até estar certo no lance (e eu não estou dizendo que ele está errado), mas ele é useiro e vezeiro (sic) em lances polêmicos no seu passado’. Esses comentaristas de futebol fazem as vezes de juízes e expressam julgamentos condenatórios: mas numa forma aberta de sociedade ninguém pode ser considerado culpado em relação ao presente apenas pelo seu passado mais distante.

Assim, somos levados, em contrapartida, a repensar nos assim considerados lances polêmicos anteriores: afinal, quem fez as polêmicas anteriormente foram esses mesmos comentaristas… Além disso, esses mesmos jornalistas se locupletam fazendo pretensas ironias (mas que são meras zombarias, não totalmente enunciadas) a propósito do sobrenome desse árbitro – ou seja, eles erram, se enganam ou têm dificuldades a respeito do nome do árbitro e brincam de forma zombeteira como se a culpa fosse do árbitro (assim como ele cumpriu a regra, mas é supostamente culpado por causar a polêmica).

‘Falta de bom senso’

‘Ele pode até estar certo e eu não estou dizendo que ele está errado’: o árbitro estar certo ou errado é o que menos importa (ou simplesmente não importa) para esses jornalistas ao criticarem o árbitro. Ser jornalista de futebol não deveria apenas ser capaz de demonstrar memória enciclopédica sobre futebol, ou fazer observações supostamente bem-humoradas ou ainda ter acesso às fofocas dos bastidores do futebol: deveria ser necessário ter efetiva ponderação ao proferir comentários de especialistas.

Mas quando tentam ultrapassar esses atributos (referentes à memória, ao bom-humor e às fofocas), os jornalistas esportivos, em geral, se mostram incapazes de argumentação ponderada. O êxito do jornalista em algum desses atributos pode dificultar que uma parte do público perceba a ausência de argumentos ponderados.

Tanto no ano passado quanto desta vez, criticaram o árbitro por não vir a público (ir à imprensa?) se manifestar. Mas o que poderia ou deveria ele dizer? Afinal, o árbitro não foi atacado pela imprensa por ter errado; pelo contrário. Tudo o que ele poderia dizer é que ele está certo, apitou corretamente, cumpriu a regra e tem razão (e isso a imprensa esportiva mostra inequivocamente, sobretudo os jornalistas que o atacaram): mas estar certo, apitar corretamente, cumprir a regra e ter razão é precisamente o que caracteriza, segundo aqueles comentaristas esportivos, sua ‘falta de bom senso’. Então, somente caberia ir à imprensa se fosse para explicar por que ele não teve o pretenso bom senso de errar, de não cumprir a regra e de não ter razão? O Processo, ou 1984 sessenta anos depois, ou A Revolução dos Bichos, jornalistas esportivos?

Sem comentários, só som ambiente

A atuação da imprensa esportiva na semana passada (quanto à partida no Mineirão) mais do que sugere que a ocorrência no ano passado (sua atitude referente à partida no Maracanã) não foi acidental, não foi um mau dia (nem uma má semana) desses jornalistas: parte expressiva da imprensa gosta de criar polêmica, não sobre o descumprimento ou o não-cumprimento das regras do jogo, mas, precisamente, sobre o cumprimento efetivamente correto das regras. Enfim, a repetição desse comportamento por parcela considerável da imprensa futebolística mostra que a leviandade faz parte dos seus caracteres constitutivos.

Semana passada, jornalistas observaram, em tom pretensamente indiferente, que a polêmica sobre aquele lance no Mineirão duraria até surgir a próxima polêmica – ou, cabe perguntar, até a próxima polêmica leviana provocada por eles? Esses mesmos jornalistas, a respeito da violência e do mau humor em torno do futebol, asseveram que futebol não é algo sério, que não deve ser levado a sério; parece que eles entendem que levar futebol sem seriedade é licença para que comentaristas sejam levianos.

Os críticos furiosos proclamam que ‘o árbitro até está certo e eu não digo que ele está errado’; traduzindo da retórica leviana, significa que ‘ele está mesmo certo, mas mesmo assim eu o ataco’. Combina condescendência – ao reconhecer, indulgente, que o árbitro está certo – e autocomplacência – o jornalista ainda é capaz de se sentir magnânimo e tolerante ao assinalar que não afirma que o árbitro está errado.

Uma vez, em conversa sobre futebol, sugeri que seria ótimo assistir partidas de futebol transmitidas pela televisão com apenas o som ambiente do estádio. Me responderam que isso já ocorreu – não tive a oportunidade de ver, mas soube que, no ano passado, num canal de televisão internacional (não me lembro, pelo que me foi dito, se num canal inglês, italiano ou alemão), durante a exibição de uma partida de futebol, teria ocorrido uma falha na transmissão e faltado o áudio de estúdio, ou se foi feito intencionalmente: a exibição foi realizada apenas com o som ambiente do estádio onde transcorria a partida – assistia-se ao jogo e ouvia-se basicamente apenas as manifestações dos torcedores. Toda a transmissão feita sem narração e, principalmente, sem comentários de jornalistas especialistas.

Os amigos que tiveram a oportunidade de assistir apreciaram a experiência. Somente por poder acompanhar a partida apenas com som ambiente do estádio, já seria ótimo. Sem querer parafrasear qualquer publicidade: no Brasil hoje em dia – sem João Saldanha, sem Nelson Rodrigues e sem Oldemário Touguinhó, que sabiam suscitar polêmicas sem serem levianos – ficar livre de comentaristas de futebol não teria preço.

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Bacharel em história e doutor em filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP