Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Por que fugir da opinião?

Já está passando da hora de o Jornal Nacional, da Globo, colocar um comentarista para abordar as barbaridades que estão acontecendo no país no campo social, econômico e político.

No campo político, a corrupção grassa; no campo econômico, vive-se capitalismo de fancaria. Leva quem é mais forte, no processo de oligopolização. A tentativa de implantação do Super-Simples nacional, de abrir espaços para empreendedores de pequeno porte, merece aplausos. O teste, no entanto, será a prática no interior da economia oligopolizada.

Já, no campo social, a deterioração é geral. Seria pior se não tivesse o esparadrapo do programa Bolsa Família. O barbarismo toma conta dos grandes centros. As cabeças cortadas, jogadas nos quintais das famílias nas periferias de Brasília, mostram a emergência do macabro no cotidiano da sociedade brasileira.

Tudo isso não mereceria comentário crítico no JN, diariamente?

A sobreacumulação de notícias, que se verifica no cenário midiático, é como a sobreacumulação de mercadorias em geral no mundo capitalista. Resulta em desvalorização dos preços, deflação, enfim, destruição de capital, como demonstra Marx em O Capital. A notícia entra na dança da mercadoria, do fetiche capitalista. Desvaloriza-se pela abundância e somente se valoriza se é bem tratada, qualificada profissionalmente, inserida no contexto em que se conjuga informação e formação. A massa de informações ofertada em profusão on line afoga as mentes. Faz-se necessário qualificar, para que o público não seja tragado por um mar que o sufoca, dado que o sistema não cuida de contextualizações, mas de alienações.

Notícia é capital

A notícia, para o capitalista, é capital. Capital é trabalho acumulado. O jornalista é sobretudo uma acumulação de capital-trabalho a serviço do capitalismo mediático. É o seu principal insumo. Então, por que não apostar no próprio capital, que, pelo trabalho, é valor que se valoriza? Por que morrer no altar dos interesses que podem ser flexibilizados com a liberdade de opinião? Basta o exercício crítico responsável da notícia em seu dinamismo dialético, contraditório, como tudo na natureza, flexível.

Excesso de informação descontextualizada é excesso de doce de leite, que, ao final, repugnaria, como tudo que é acriticamente excessivo. Por que, então, ter medo da opinião? A demanda nacional requer uma sociedade com opinião crítica no cenário da globalização. É uma questão de segurança nacional formar homens críticos, uma sociedade crítica, criativa, independente, consciente de si, como destaca Karl Mannheim, em Ideologia e utopia. Somente dessa forma deixa de ser prisioneira de falsos conceitos.

A Globo experimentou vários profissionais para fazer comentários no horário nobre. Detonou todos. A culpa não foi por conta desses profissionais. Fundamentalmente, não conseguiu a direção do veículo compatibilizar seus interesses com a demanda pela livre informação contextualizada em suas variadas manifestações, expressas em clima democrático, como reivindica a sociedade. Depois, não se pode reclamar que ocorra descolamento entre o povo e os meios de comunicação.

Por que a Globo resiste aos competentes profissionais para voar um pouco mais alto nos horários de pico de audiência? Permanece tímida, pela manhã e na madrugada. No horário nobre, esconde-se. Tem medo de opinar em cima dos fatos, mostrando a necessidade de contextualizar os acontecimentos? Por que não prestar esse serviço ao distinto público, sob o argumento de que basta apresentar os fatos para que se tirem conclusões, respeitando a inteligência de cada um?

Pesquisas fartas mostram que, com a velocidade com que são apresentadas as notícias no noticiário global, a percepção contextual é praticamente inexistente num país onde o analfabetismo grassa assustadoramente. A capacidade média de leitura é baixa e, conseqüentemente, baixo é o entendimento da mensagem. Torna-se necessário qualificar o noticiário.

Medo da identidade

A Globo tem medo de assumir uma identidade que a livre da ambigüidade que a persegue ao longo de sua história, nascida nos escombros da ditadura militar, cheia de desconfianças e nebulosidades. Os exemplos recentes são eloqüentes. Franklin Martins, ex-repórter da Globo, comentarista no horário nobre, relativamente independente, competente, foi ejetado do seu posto por razões não suficientemente explicadas à luz do dia. À luz da noite, se sabe que seus comentários teriam incomodado interesses poderosos, apesar de serem perfeitamente palatáveis pelo bom-senso democrático em nações civilizadas.

O mesmo aconteceu com o cinematográfico Arnaldo Jabor. Seus comentários sarcásticos, acompanhados de tiques teatrais, igualmente competentes, como os de Franklin, também encheram a panela de pressão nos limites que lhe cabiam, sabidamente conservadores. Hoje, fala na madrugada. Da mesma forma, competente, Alexandre Garcia, tem dado banho, como fez na quarta-feira, 27, em comentário exemplar, no Bom Dia Brasil. Mas fica ali, pela manhã, enquanto o povo está no ônibus indo para o trabalho. Com suficiente ponderabilidade e firmeza, chamou às falas interesses poderosos, promotores da anti-ética na política atual. Por que não colocá-lo no Jornal Nacional?

Dá pena ver Renato Machado, experiência acumulada na profissão, ficar inibido em soltar seu pensamento equilibrado como âncora do Bom Dia Brasil, temeroso de cair em danação, quando poderia ser mais extrovertido, para dar vazão à sua inteligência e seu charme natural, se sentisse a área aberta para penetrar e fazer gols de letra. Wilham Waak, da mesma forma, contém sua capacidade argumentativa nos limites do receio de ferir suscetibilidades ancoradas em fortes razões que não podem ser explicitadas. Fala um pouco mais livre no seu programa de entrevista e debates, com três personagens, nos finais de semanas, na Globonews, mas realmente já está cansando, pois, salvo honrosas exceções, é um repeteco de argumentações, principalmente, quando são entrevistados consultores políticos e econômicos formados na escola do mecanicismo escolástico. Escolástica e mecanicista, também, é Miriam Leitão, que passa longe da dialética. Ainda assim, é positivo porque suscita a controvérsia, mesmo que na Globo os antagonismos sejam sufocados em nome de razões superiores.

A nação está madura, mais do que suas próprias lideranças, para absorver criticamente quem vai contextualizar os fatos para ela na televisão, a fim de educá-la para a democracia econômica, política e social. Ao ejetar seus comentaristas do horário nobre, a Globo cumpre papel negativo. Deixa de prestar serviços públicos competentes ao povo, negando a função para a qual se credenciou como concessionária.

Bandeirante na frente

No horário nobre, por enquanto, apenas, a Bandeirantes dá as caras, deixando em relativa liberdade Joelmir Beting, sempre irônico e sarcástico. Ricardo Boechat ainda não soltou para valer seu humor carioca que exibia quando colunista, mas sempre passa a bola redonda, ora para Joelmir, ora para a inteligente e bela Serrão. No mais, sobra um editorial, lido por Beting, posicionando a emissora diante dos assuntos capitais. Trata-se de respeito aos telespectadores, no mínimo, algo que a Globo se recusa a fazer. É, sem dúvida, uma aposta tímida. A Bandeirantes, entre as empresas privadas concessionárias, é a única que sustenta debate nacional. O resto fica por conta da estatal Radiobrás, demonstrando que o Estado é mais democrático que, por exemplo, a Globo, a Record e a SBT, em matéria de discussão pública dos assuntos nacionais.

No jornalismo do horário nobre, a Record repete a Globo. Pouquíssima ousadia. Perde oportunidade de deixar de disputar meras aparências com a Globo, quando poderia destacar-se pela essência, se houvesse estímulo suficiente aos jornalistas. Nada de comentários, como na Globo, é a palavra de ordem na classe empresarial evangélica da Record. O SBT tenta inovar com Carlos Nascimento, buscando manter ligação com o público, para comentar os fatos do dia, algo que abre caminhos promissores, se persistentemente trilhados – o que, em se falando de Silvio Santos, é uma incógnita. Na TV Gazeta, o sempre cáustico Carlos Chagas, anos de estrada e competência no jornalismo político, faz papel expressivo, mas, sendo uma audiência baixa, pouco efeito produz no povão. É como caos no aeroporto. Pouco diz respeito à massa.

Reforma ou revolução

A Globo, ao fugir de sua responsabilidade em qualificar seriamente o jornalismo, pode ser tragada pela nova dinâmica tecnológica que chega com a TV digital, interativa e aberta à produção criativa de conteúdo. Estaria entre a reforma e a revolução. A discussão sobre o assunto ainda está incipiente no Congresso, e a Globo já atua, em Brasília, nos bastidores porque, evidentemente, esse é o futuro e ela não quer ficar para trás. Mas, se continuar resistindo à renovação da sua relação com o público, tornando-se menos glamourizada e mais realista, levando a ele o real concreto em movimento, em vez de figurações apressadas da realidade, como se quisesse fugir dela, pode criar seu próprio calvário.

Por que ficar escondendo da população o fato de que se vive no Rio uma guerra civil aberta entre o morro e a cidade, dados os antagonismos sociais em jogo, e insistir com o telespectador que ele é vítima de bala perdida, quando, na verdade, está na linha de tiro entre as tropas do governo e as tropas dos marginalizados e dos traficantes? Por que ter medo da guerra civil em curso e tentar vendê-la com nome falso?

A população já sabe o que está acontecendo. Quanto mais se falar obscuramente para ela sobre uma conjuntura de guerra em que vive, menos credibilidade terá o autor da fala. Simplesmente porque deixa de respeitar o público.

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Jornalista, Brasília, DF