Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Por que não podemos reclamar do Larry Rohter

Sábado, 10 de setembro de 2005, por volta de 13h45. Televisão sintonizada na TV Globo. Começa o ‘Mundo em um minuto’, no Jornal Hoje, o bloco de zapping correspondente ao ‘Giro Global’, ‘Dois Minutos pelo Mundo’, ‘Outras Notícias do Exterior’ e outros quadros e seções jornalísticas de miscelânea internacional equivalentes ao ‘colunão’ [nota pequena] do impresso.

Quatro notas cobertas (texto em off sobre imagens de agências e TVs internacionais) são lidas pela âncora do dia. A primeira é sobre a prevenção a doenças transmitidas pela água contaminada nas regiões inundadas da Louisiana, nos EUA. Em seguida, soldados americanos no Afeganistão em remorsos pelos atentados de 11 de setembro. Na terceira, um roteiro turístico em Nova York que inclui visita guiada ao ‘Ground Zero’ com sobreviventes do ataque às torres gêmeas. E, encerrando o bloco, a seguinte nota:

‘No Japão, reta final para as eleições presidenciais. Uma pesquisa publicada hoje confirma o favoritismo do primeiro-ministro Junichiro Koizumi. Uma vitória por ampla maioria abrirá caminho para as reformas que Koizumi quer implementar, como a privatização dos correios.’ (texto do site oficial do Jornal Hoje)

A exemplo do marechal Deodoro, o redator de Internacional do Jornal Hoje proclamou a República no Japão de uma só espadada (ou, no caso, ‘digitada’). Pois, como se sabe, só há eleições presidenciais quando se elege um presidente, cargo que não existe naquele país. No Japão, que é um Império, há imperador (chefe-de-estado) e primeiro-ministro (chefe-de-governo). Enquanto aquele tem mandato vitalício, este depende da composição político-partidária no Parlamento, redefinida a cada vez que ocorrem eleições legislativas que, por sua vez, determinam qual partido ou coalizão comporá o Executivo. O termo adequado, para o caso de monarquias parlamentaristas, é ‘eleições gerais’.

Os mais céticos podem conferir no site do Jornal Hoje. O erro está lá, documentado e exposto ao público – pelo menos estava até a atualização de segunda-feira.

Equívocos deste tipo podem ocorrer – e ocorrem – em todo veículo de imprensa que opera sob a rotina de produção estafante e de alta pressão à qual estão sujeitos os jornalistas, principalmente na mídia eletrônica. O chamado ‘tempo real’ força a hiperatualização das informações e diminui a folga para checagem e revisão. Redatores e editores deixam para acrescentar o material de agências na última hora, para entrarem com as informações mais ‘frescas’. Neste ritmo, mesmo profissionais competentes e bem-informados cometem seus escorregões.

Grandes paixões

Apesar disso, não é possível justificar ou relevar o problema. Ainda que este não seja o tipo de engano que leve a retratações no ar, deve ser ao menos registrado. A tendência natural, no entanto, aumenta a probabilidade de que uma correção a posteriori seja desmerecida, chamada de purismo ou apego à erudição. É possível até antever argumentos que justifiquem ou minimizem o erro: além do já mencionado estresse da produção industrial de notícias, podem alegar a indiferença dos telespectadores e a pouca gravidade do assunto – o que é, afinal, trocar o sistema de governo de um país do outro lado do mundo? Talvez, para o telejornal das donas-de-casa, não tenha maiores conseqüências a ilusão de que o Japão é uma república. Mas este grão de areia, numa infinidade de erros cotidianos e recorrentes, dá uma praia poluída.

No noticiário internacional, toda informação é amplificada: cada dado representa um fragmento dos inúmeros fatos que acontecem ininterruptamente em todo o resto do mundo. Se é apenas aquilo que o público recebe, é aquilo que ele julgará que houve de mais importante no planeta naquele dia. Pelo mesmo motivo, os erros de informação em Inter são proporcionalmente mais graves. O espectador que ouvir falar em ‘eleições presidenciais no Japão’ vai aprender incorretamente que aquele país é uma república e, se mais tarde perder outra notícia que corrija o equívoco ou o desminta, não vai entender. E tende a repeti-lo, reproduzi-lo aos filhos, em conversas com os vizinhos, em sala de aula; e ainda valendo-se da credibilidade da mídia para se legitimar: ‘Claro que tem presidente no Japão, ué! Deu na televisão!’ Assim, em escala maior, toda a educação de um povo – o nosso – fica prejudicada.

Esse desserviço prestado pelo Jornal Hoje – e por outros canais e veículos que tratam a Internacional com desleixo – pode parecer inócuo sob a ótica do ofensor, mas suscita grandes paixões quando a situação é invertida.

Imagem falseada

Toda vez que a imprensa internacional comete deslizes sobre o Brasil e os brasileiros, a mídia nacional se levanta em indignação e, não raro, leva a protestos oficiais do Itamaraty. Já entraram no anedotário nacional os episódios folclóricos de estrangeiros que acreditam – e às vezes publicam – que a capital do Brasil é Buenos Aires, que a veste típica do país é a da Carmen Miranda, que macacos andam nas ruas do Rio de Janeiro ou que nosso idioma nativo é o espanhol. Mais recentemente, o correspondente do New York Times no país, Larry Rohter, foi execrado ao protagonizar as polêmicas da cachaça presidencial e das gordinhas na praia. Na ocasião, os brasileiros primeiro gritaram contra as informações incorretas divulgadas sobre o país; depois, adoraram e refestelaram-se em expor ao ridículo o engano do jornalista.

Será exagero pensar que, se tratamos com desprezo a cultura e a política dos outros, perdemos a moral para criticar o desdém que dedicam às nossas? O que importa para os americanos, afinal, se as gordinhas de Ipanema eram brasileiras ou tchecas? Pois se, quando falamos do Japão, pouco nos vale qual é exatamente o regime político deles… E, se já acontecem problemas com a política americana e japonesa, imaginem-se ainda piores os casos de povos e países cuja aparição nos ‘giros globais’ e ‘colunões’ de jornais é ainda mais rarefeita. O que se pode esperar quando, da noite para o dia, jornalistas das editorias de Internacional têm que revirar enciclopédias e almanaques em busca de informações sobre a Geórgia, a Ucrânia e a Quirguízia, cujas crises eleitorais nos últimos três anos geraram coberturas inesperadas? Ou, para não ir tão longe, qual foi a última notícia divulgada no Brasil sobre o Suriname, nosso país vizinho?

Se a presença dessas nações no noticiário é tão inusitada e pitoresca, imaginem se a oportunidade for perdida com a publicação de um erro, um equívoco, um deslize de revisão. Para o leitor, o ouvinte e o espectador, a imagem daquele país inteiro estará falseada por uma bobagem.

Quem colonizou os franceses?

Não se cobra de nenhum profissional precisão maior do que ele pode alcançar. Em veículos sérios, em todas as editorias há a preocupação quase paranóica de evitar escorregões, mas talvez seja na Inter que existam menos chances de voltar atrás. E, pior, erros assim têm ficado cada vez menos perdoáveis por causa do acesso mais fácil à checagem. Se o volume de informações e o ritmo de trabalho em jornalismo internacional podem beirar a neurose, também é certo que hoje as fontes para apuração sobre outros países são incomensuravelmente mais acessíveis do que 10 anos atrás.

A persistência de incorreções justamente na época em que há mais informação sobre o mundo é um fenômeno. Se as suas causas são infra-estruturais, superestruturais, culturais, educacionais, naturais ou pura displicência, é preciso uma investigação mais aprofundada para responder. São questões a serem pensadas e que podem melhorar o jornalismo – internacional como um todo – que se faz no Brasil atualmente.

Em tempo: certa vez, num 14 de julho da década de 1990, William Bonner disse ao fim do Fantástico que aquela data era feriado na França porque comemorava ‘a independência’ do país. Mesmo sem explicar quem teria colonizado os franceses, o apresentador nunca leu a correção.

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Formando em Jornalismo pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ)