Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Por trás dos fatos

‘Tumulto, corra que o tumulto está formado, vem cá, vem ver, que dentro do tumulto pode estar você’ (O Rappa)

O conflito de traficantes no Rio de Janeiro não deve levar, ao contrário do que aparenta, a uma solução rápida, eficaz e pontual, como sugerem as declarações do secretário de Segurança José Mariano Beltrame e dos comandantes da polícia militar e civil. Como dizem os antigos, o buraco é mais embaixo e passa por um processo de exclusão social que não só fomenta a revolta como legitima a violência, conflagrada não somente contra a parcela da população aquém dos índices de desenvolvimento humano, esmagada sob políticas públicas de confronto celebradas pelo governador carioca, mas também contra os ditos agentes da guerra civil que hoje ganha as capas dos jornais para júbilo da mídia – a saber, policiais e traficantes.

Com baixas de ambas as partes, os dois exércitos estudam-se, analisam a estratégia e em suas ações não se preocupam com as centenas de civis colocados em linha de tiro quando de seus confrontos, quase sempre previstos e aguardados. Dos dois lados existem subversões, exageros, exceções. Entretanto, somente se contabilizam os mortos do lado de cá, onde aguardam as câmeras. A eles, os outros, sobram os cães, a humilhação das revistas, o pé na porta dos barracos no cume do morro onde não costumam chegar as luzes midiáticas, a menos que se preocupem em equipar seus repórteres com coletes à prova de balas.

Cidadania não é para todos

No entanto, não cabe mais definir o corpo societário segregando-o entre excluídos e excludentes, pretendendo que a simples aplicação das leis sob um Estado utopicamente de Direito possa solucionar o problema. Resta-nos administrar a conseqüência endêmica das práticas setorizadas que limitam as comunidades mais pobres ao seu próprio espaço físico, com a criação sazonal de escolas e hospitais no campo emergencial de práticas essas que não foram suficientes para conter o alastramento do vírus da violência em última escala, explodindo sobre os ombros do corpo policial do Rio, nas hélices de um helicóptero que foi feito para levar a segurança por sobre sua fuselagem semi-blindada.

Segundo o comandante-geral da PM, está em negociação a compra de um modelo blindado que certamente será de grande utilidade frente à guerra civil carioca. Em que pesem as vidas de servidores públicos arriscando-se por acreditarem no modelo de segurança imposto pelo governo (não enfrentariam incursões quase diárias em favelas onde os aguardam armamentos centenas de vezes mais sofisticados que os que carregam se não o fizessem), não se pode crer que armar melhor a polícia surtirá efeito além dos fogos de artifício dos grandes jornais pela oferta de noticiário. Tão somente ocorrerá a momentânea sensação de segurança somente nas pautas dos jornais diários, uma vez que a classe média, espremida entre o medo e a raiva, já não consegue experimentá-la.

Não existem leis que possam punir de forma eficiente indivíduos que não se sentem abarcados por ela, sob um Estado que não respeitam e valores de uma ética distante do seu cotidiano. As prisões construídas em cada estado brasileiro jogam para debaixo do tapete a realidade de que a cidadania não é para todos, mas tão somente para aqueles que se alternam entre documentos oficiais e estatísticas, quando passam de contribuintes à vítimas da violência urbana.

Romper o muro subjetivo

O mundo dos registros, dos impostos e obrigações não é válido para uma sociedade paralela onde à desordem se responde com a imposição da força. Afinal, saúde, educação e emprego são direitos fundamentais garantidos pela Constituição, numa configuração que não abarca a todos, apenas aos cidadãos que enxergam. Longe dos olhos da justiça permanece um aglomerado de pessoas vivendo entre o medo do próximo e a indiferença do outro. No cenário que se configura hoje já não cabem mais os estereótipos de bandidos e mocinhos, onde os primeiros eram divididos entre bons e maus. Estes últimos roubavam mas protegiam sua própria comunidade em oposição aos heróis, de fardas ou sem, que sacrificavam suas vidas em prol de uma sociedade que os aplaudia.

A subversão da humanidade no fato de que muitos dividem o pouco num espaço exíguo e alguns caminham cegos em suas ilusões de prosperidade gerou mutações sociais, relações corrompidas num ambiente em que a dor chega para todos. Já não há mais classes; corrupção e violência chegam a níveis inimagináveis, principalmente porque estivemos muito preocupados contando nossos mortos, enquanto o que acreditávamos ser o outro lado sofria baixas que julgávamos necessárias. Somos todos resultantes da mesma prática doentia e excludente. Ainda queremos apenas segurança no ir e vir, sem pensar que este conceito passa pelo primordial respeito ao próximo e seu igual direito não só de ir, mas também vir, se assim tiver vontade.

Resta hoje o tempo de repensar esse conceito e avaliar quão longe fomos na nossa tentativa de controlar o incontrolável. Massas de pessoas não ficam muito tempo sob o tacão armado do Estado. Sobram elementos que transbordam das vielas, ganham as ruas e chegam até as nossas janelas. Incômoda realidade? Certamente. Mas a conclusão persiste no fato de que somos definitiva e irremediavelmente semelhantes, em fragilidade e desejos. Cabe-nos romper o muro subjetivo que ainda persiste e recriar o governo sob um Estado verdadeiramente de Direito, não somente para alguns, mas para todos os cidadãos.

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Estudante de Jornalismo, Rio de Janeiro, RJ