Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Prática e eventual ilegalidade perante a legislação brasileira

Nos países de grande produção cinematográfica e naqueles onde as novelas fazem parte da vida cotidiana dos cidadãos, não é só a publicidade constante dos intervalos comerciais que financia as produções. É também, e muitas vezes, o merchandising inserido na dramaturgia que tem esse papel.

A palavra merchandising, na verdade, tem um significado muito mais amplo do que aquele normalmente utilizado; refere-se a uma das últimas etapas do marketing, onde uma marca, um produto ou um serviço são colocados frente a frente com o consumidor.

O termo, como agora nos referimos, é mais precisamente conhecido como ‘merchandising editorial’ ou ‘merchandising eletrônico’. São as famosas e hoje comuns inserções de produtos ou serviços em programas de televisão, rádio, teatros etc., onde os atores, no desenvolvimento de seus papéis, utilizam ou mencionam produtos ou serviços, sem qualquer referência de que aquelas aparições são, na verdade, formas pagas de divulgação de bens.

Vínculo contratual

Assim, durante a cena na qual o ator, reverenciado pela mídia, está em uma lanchonete bebendo o refrigerante da marca mundial mais conhecida ou quando o filme é estrelado, em animação, pelas bonecas preferidas das adolescentes de todos os continentes onde são vendidas. No teatro, por exemplo, quando o protagonista elogia um determinado restaurante ou menciona que obteve, facilmente, um empréstimo em determinado banco. Podemos vê-la também nos musicais, na internet, no rádio, em artigos impressos e em todas as práticas artísticas nas quais se puder inserir um anúncio comercial em meio à arte.

Tudo isso acontece por uma simples razão: ao se divulgar um produto ou serviço no meio da programação, o anunciante conta com o testemunho dos protagonistas envolvidos e faz sua publicidade de forma mais sutil, sem que o telespectador compreenda que está assistindo, não a uma obra artística, mas a uma vitrine comercial. É muitas vezes bombardeado por marcas, produtos e serviços, sem tomar conhecimento disso.

Em resumo, sempre que houver a aparição de um produto ou um serviço em obras artísticas que não seja gratuita, nem fortuita – mas, ao contrário, por meio de vínculo contratual entre o fornecedor e o responsável pelo evento cultural ou obra artística, com o oferecimento de uma contraprestação por isso –, haverá o merchandising.

Princípio da identificação

A questão que ora se coloca é a legalidade dessa prática. Será que o merchandising, como muitas vezes é feito, respeita as normas jurídicas, mais precisamente o artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor? Referido artigo prevê que toda a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.

Será que o consumidor tem condições de fácil e imediatamente reconhecer a publicidade de um produto ou serviço quando o anunciante se utiliza do merchadising?

Não temos dúvida em afirmar que na grande maioria das vezes a resposta é negativa. Isso significa que essa prática, em regra, é proibida porque no fundo é uma publicidade mascarada e subliminar. Aliás, sob o ponto de vista mercadológico, quanto mais sutil e mais difícil de ser identificado o merchandising, melhor será considerada a publicidade na qual se consubstancia.

Lembremos que publicidade que não se intitula como tal viola o princípio da identificação da mensagem publicitária, estatuído no artigo citado.

Citação nos créditos finais

Percebe-se claramente do texto legal que o objetivo da norma é permitir ao receptor da mensagem, o consumidor, pleno conhecimento de que aquilo que está ouvindo ou assistindo possui tão-somente objetivo comercial; que a intenção é de convencê-lo acerca das necessidades e conveniências na aquisição ou utilização do produto ou do serviço que lhe está sendo apresentado. Em outras palavras, o consumidor deve estar consciente de que as informações que lhe estão sendo passadas contêm uma enorme parcialidade de opinião, na medida em que divulgadas por quem pretende vender-lhe o bem ou serviço.

Não é só o dispositivo mencionado que deve ser visto. Também o chamado ‘Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária’, que é aplicado pelo Conar – Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária –, um órgão gerido e financiado pelo mercado publicitário, prevê no seu artigo 28 que ‘o anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua forma ou meio de veiculação’.

A proibição do merchandising não está ligada à sua enganosidade ou abusividade, que pode até não existir, mas sim, ao fato de não permitir ao consumidor uma imediata identificação da publicidade.

Alguns doutrinadores dizem que a solução para o problema estaria na mera citação da existência de publicidade, com as respectivas indicações dos produtos ou serviços, ao término do programa, como, por exemplo, no caso de programação televisiva ou dos filmes em cinemas, nos créditos finais.

Proibido para crianças

No caso de peças teatrais, espetáculos musicais e assemelhados, esse cuidado poderia resolver a questão, mas desde que os consumidores fossem avisados antes do início da apresentação, ou antes da abertura das portas para a saída do público.

Entretanto, não nos parece essa a solução quando estamos diante de uma programação televisiva. Primeiro, porque existe hoje um comportamento mundial, criado pelo controle remoto da TV, que nos permite assistir a inúmeros canais quase ao mesmo tempo. Na realidade, e na vontade de saber tudo o que está passando, raramente vemos o filme ou a novela desde os primeiros segundos, e mais raramente ainda assistimos o programa até o verdadeiro final (com a aparição dos créditos, quando existem). Além do mais, não podemos nos esquecer que grande parte dos telespectadores dá pouca ou nenhuma atenção aos chamados créditos finais.

Diante dessa realidade, aquela solução dada por alguns é inócua, já que não atinge os objetivos da lei – a publicidade deve ser fácil e imediatamente identificada.

Para tornar legal e válida esta prática, seria necessária a inclusão de informação, como, por exemplo, a palavra ‘publicidade’, imediatamente no momento do merchandising. Melhor esclarecendo, no exato instante da cena em que os atores da novela ou do filme entram em um automóvel cuja marca aparece com destaque, ou utilizam um celular, aparecesse em alguma parte do monitor da TV ou da tela, uma frase ou uma palavra explicativa de que se trata de uma publicidade do produto ou serviço ‘x’.

É importante ressaltar que isso valeria tão-somente quando se tratasse de publicidade dirigida a um público maior de 12 anos, tendo em vista que qualquer tipo de publicidade que seja dirigida às crianças – inclusive, mas não apenas, o merchandising – é prática proibida pela legislação pátria. Mas essa já é uma outra estória, para um outro artigo.

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Respectivamente, advogada, coordenadora do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, autora de Publicidade abusiva dirigida à criança; e juiz, assessor da presidência de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, doutor em Direito Civil pela USP e autor de A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam (Editora Revista dos Tribunais)