Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Precisão ou imperícia numérica?

Matéria assinada por Rodrigo Fonseca e publicada na sexta-feira 6/5 no sítio eletrônico Superesportes , veio com a manchete ‘Três jogadores são donos de 63,82% dos gols atleticanos‘ . Muitos leitores, sendo ou não torcedores do Galo, devem ter estranhado, afinal, o que esses ‘sessenta e três, vírgula, oitenta e dois por cento’ significam?

Por que apresentar um valor percentual com duas casas decimais? Por que simplesmente não arredondá-lo para o inteiro mais próximo? Refletiria isso o rigor e a precisão da informação ou, paradoxalmente, seria apenas fruto de uma certa imperícia numérica? Por estranho que pareça, há boas razões para suspeitar que esta última possibilidade seja a explicação mais apropriada. (Problemas com números não se restringem, claro, à editoria de esportes; ademais, flagrantes semelhantes são relativamente comuns em outras mídias.)

Antes de mais nada, vale notar que o valor mencionado na matéria já contém um erro de arredondamento. Vejamos: lendo o primeiro parágrafo, logo ficamos sabendo que três jogadores (Rodrigo Fabri, Euller e Fábio Júnior) marcaram juntos 30 dos 47 gols até então assinalados pelo Atlético. Para descobrir qual foi a contribuição relativa dos três, dividimos o número de gols marcados por eles pelo total de gols assinalados por toda a equipe (o que inclui, claro, os gols feitos pelos três). Dividindo 30 por 47, obtemos 0,63829787…; multiplicando este resultado por 100, chegamos então a 63,829787… %. De acordo com as regras de arredondamento, esse percentual corresponderia a 63,83%, e não aos 63,82% mencionados na matéria. (Arredondar não quer dizer abandonar algarismos; o arredondamento de um número como 63,829787 para o centésimo mais próximo, ou para duas casas decimais, é 63,83 porque 63,829787 está mais próximo de 63,83 do que de 63,82.)

Nada tão extraordinário

Dito isso, resta mostrar por que o percentual mencionado na matéria deveria ter sido arredondado para 64%. Primeiro, vale notar que as quantidades de gols mencionadas são ambas de uma ordem de grandeza relativamente baixa – quer dizer, estamos tratando com algumas dezenas (30 e 47), e não com uma mistura de dezenas, centenas ou milhares de gols. Segundo, eventuais mudanças (para mais ou para menos) no número de gols assinalados resultam em ‘saltos’ mais ou menos bruscos na escala que mede a contribuição relativa; por exemplo, quais seriam os efeitos, em termos percentuais, se os três artilheiros tivessem feito, digamos, não 30, mas sim 29 ou 31 gols dos 47 assinalados pelo time do Atlético? Façamos as contas:

** 29 / 47 = 0,61702127… (o equivalente a cerca de 62%); e

** 31 / 47 = 0,65957446… (cerca de 66%).

Como se vê, um gol a mais ou a menos implicaria saltos de aproximadamente 2% ao longo da escala percentual. Nesse caso, portanto, não precisaríamos nos preocupar com décimos ou centésimos de um por cento. (Ao contrário, em outras situações, números inteiros são grosseiros demais para retratar os percentuais de mudança; nesses casos, devemos apresentar os valores em questão com uma, duas ou até mais casas decimais. Os exemplos aqui comumente envolvem grandezas extremamente sensíveis a baixos percentuais de mudança, como é o caso da taxa de crescimento entre recém-nascidos, índices do custo de vida, parâmetros populacionais etc.)

Por fim, há ainda um componente psicológico em toda essa questão. Se um leitor, digamos, matematicamente ingênuo passa os olhos em um valor como ‘63,82%’, ele ou ela pode ficar mais impressionado com a segunda metade da expressão, afinal, o par de algarismos ’82’ é maior que o par ’63’. Ora, qualquer que seja o percentual – 63% ou 64% – está claro que os três artilheiros foram responsáveis pela maioria dos gols feitos pela equipe. (O que, na verdade, não é nada assim tão extraordinário, em se tratando de jogadores do Atlético que passam boa parte do tempo de jogo nas proximidades do gol adversário.)

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Biólogo, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)