Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Preconceito contamina a cobertura

Ocorreu um episódio bastante interessante e que merece registro e reflexão no OI. Em 27/3/2008, a Folha de S.Paulo finalizou uma matéria sobre casos de violência que têm ocorrido com alunos dos colégios da região da Higienópolis com o seguinte conteúdo:

‘Escola rica x pobre

Muitas vítimas afirmam que os assaltantes são alunos da escola estadual Professor Fidelino Figueiredo, que fica na rua Imaculada Conceição, a cerca de quatro quarteirões do shopping. `Todo mundo sabe que tem um pessoal no Fidelino que sai da aula e sobe [para a avenida Higienópolis] para assaltar´, diz Renata, 17, do Rio Branco, assaltada duas vezes. A diretora do Fidelino não quis falar com a Folha. A Secretaria da Educação do Estado diz que não há queixas ou registros de ocorrências de furtos por parte de vítimas ou pais.

Os alunos da escola estadual reagem: `A bomba sempre estoura do lado mais fraco. É o pessoal da escola rica acusando o da pobre´, diz Débora,14. `Mas peraí, gente, vamos falar a verdade aqui: todo mundo sabe que o negócio [na Fidelino] é brabo. Tem isso [assalto], sim, e alguns deles [alunos que praticam o delito] não fazem a menor questão de esconder. Falam mesmo´, afirma Daniela, 15, que estuda na sala de Débora e já teve o MP3 furtado de dentro da mochila, na escola. Rafael, 15, diz que `existe uma espécie de facçãozinha´. `A maioria fica na frente da escola quando acaba a aula, encostada no muro do outro lado da rua. Não sei nem se eles mexem com droga´, diz.

A Folha vai até o muro em frente à escola, para conversar. A princípio, eles se queixam do preconceito: `Só porque é escola estadual?´, pergunta Marina, 15. Mas ela mesma continua: `Claro que existe isso [assaltante], não dá pra omitir´’ (ver aqui).

Respeito de (e para) todos

Os alunos da escola pobre, seus pais e a Apeoesp ficaram indignados e realizaram uma manifestação em frente ao jornalão para solicitar a publicação da seguinte nota:

‘Em defesa da EE Prof. Fidelino de Figueredo e da escola pública

Nós, alunos, professores e pais da EE Prof. Fidelino Figueiredo, ficamos indignados com a matéria, publicada, no dia 27 de março de 2008, no jornal Folha de S.Paulo, assinada pelo jornalista Paulo Sampaio, que declarou ser morador de Higienópolis. Pelo seu conteúdo, o texto pode levar a uma interpretação preconceituosa e sem fundamentação sobre a escola pública.

Preconceituosa, pois apresenta alunos da escola pública Fidelino Figueredo como possíveis ladrões, estabelecendo uma diferença entre estes e aqueles das escolas particulares da região (Santa Cecília e Higienópolis). Para sustentar os seus argumentos, o jornalista citado, utiliza o depoimento de pessoas, supostamente alunos, menores de idade.

Entendemos que o subtítulo da matéria ‘Escola rica x pobre’, além de divisionista e preconceituoso, incita à violência entre os estudantes da região que se encontram na mesma comunidade. Neste sentido, o texto pode resultar numa irresponsabilidade!

Não podemos, em nome de uma suposta liberdade de imprensa (liberdade que, usada com responsabilidade, é um avanço democrático), permitir que haja incitação à violência entre os jovens e divulgação de preconceitos sociais, étnicos ou qualquer outro tipo de divisão.

Os problemas da sociedade não atingem, exclusivamente, os alunos escola pública, portanto entendemos que temos que acabar com as origens desses problemas, uma vez que se encontram vinculadas às desigualdades sociais.

Em defesa da EE Fidelino de Figueiredo, repudiamos este tipo de reportagem. Portanto:

Abaixo o divisionismo, o preconceito e a incitação à violência!

Em defesa da escola pública de qualidade para todos!

Os alunos e alunas da Escola Fidelino são nosos(as) alunos(as), filhos e filhas de trabalhadores(as)!

Exigimos respeito de todos(as) e para todos(as), independente da classe social!’ (Ver aqui)

Dever de eqüidistância

O caso fez-me lembrar de artigo publicado neste Observatório (‘A questão social como caso de polícia‘). No Brasil, é uma tradição secular a polícia tratar a questão social como caso de polícia. Só a duras penas os movimentos sociais conseguiram alguma legitimidade e direito a se expressarem na arena pública. Mesmo assim sob a desconfiança da imprensa, que oscila entre alisar e criminalizar seus líderes.

Acontecimentos recentes já dão a impressão de que a mídia brasileira está deixando de oscilar. Antes dos Jogos Pan-Americanos, durante a ocupação policial da favela do Alemão, no Rio, a TV Globo decretou que todos os mortos eram criminosos e obrigou-me a criticá-la (ver aqui). Dias depois se confirmou a suspeita de que os mortos nem tinham passagem pela polícia e a Globo foi obrigada a reconhecer seu erro.

O episódio envolvendo a Folha e a escola pobre é uma repetição do que ocorreu na favela do Alemão. A Rede Globo havia presumido que os mortos eram criminosos. A Folha parece ter presumido que os alunos da escola pobre são os ladrões que incomodam os pobres estudantes da escola rica. Fico me perguntando o que ocorrerá se isto se tornar um padrão. Se a imprensa, que tem um dever de manter eqüidistância dos fatos que apura e noticia, admitir implicitamente que estamos numa guerra civil (e de classes) não poderá se dizer vítima caso passe a ser publicamente hostilizada.

Pisada na bola

Nunca é demais lembrar aos jornalistas que o Direito Penal em vigor prescreve que cada um responde pela sua conduta. Ninguém pode ser responsabilizado criminalmente pela conduta alheia. Portanto, a imprensa não pode e não deve punir uma comunidade inteira pela conduta de alguns indivíduos. Se passar a ignorar este princípio, a própria imprensa acabará legitimando represálias cruzadas. Imaginem só o que ocorreria se a população resolvesse invadir e submeter a saque as casas de todos os políticos só porque alguns são safados e corruptos?

A Constituição em vigor prescreve a liberdade de imprensa. Mas nem a Globo nem a Folha são imunes – e podem ser responsabilizadas pelos seus abusos. Se todos os ofendidos em matérias como as citadas (todos os mortos são criminosos, os alunos das escolas pobres são ladrões) passarem a recorrer ao Judiciário, as empresas poderão sofrer sérios problemas financeiros.

À liberdade de imprensa corresponde o direito de acesso à informação. Na outra ponta do jornal está o cidadão, que tem direito a consumir informações precisas e – não é pedir muito – desprovidas de preconceitos de natureza sócio-econômica, racial etc. Se alguém dissesse uma bobagem como aquela num blog, o caso passaria desapercebido. Mas a Folha é uma empresa sólida, quase centenária, e publica um dos jornais de maior circulação no Brasil. Pisou na bola – e feio.

Além de publicar a nota dos ofendidos, a Folha deveria pedir publicamente desculpas e designar o jornalista que fez a matéria para cobrir o cotidiano puxado nos alunos da escola pobre. Caso contrário, seremos obrigados a perguntar: Folha de qual São Paulo, da São Paulo rica ou da São Paulo pobre?

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Advogado, Osasco, SP