Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Preconceito e inapetência jornalística

Uma é indignada, saudosa, sofrida, destemida, persistente, empenhando-se de corpo e alma para que se faça justiça. A outra é dissimulada, fingida, farsante, fajuta, militante, que parece pretender apenas facilitar a vida dos que querem fugir da Justiça. As duas viveram situações de trágica coincidência. Ambas foram ligadas a prefeitos de importantes cidades paulistas pertencentes ao mesmo partido e brutalmente assassinados. Uma não se conforma com a versão do partido, de que se tratou de crime comum. A outra faz questão de endossar a versão do partido, de que se tratou de crime comum. (O Estado de S. Paulo, 12/11/ 2005)

O artigo do colunista Mauro Chaves foi uma exceção no noticiário da semana sobre os depoimentos de Roseana Garcia e Ivone Santana, as duas viúvas convocadas pela CPMI dos Bingos, para depor na mesma data. Noticiários marcados por uma inusitada frieza, limitando-se a reproduzir os trechos mais importantes dos depoimentos. Para quem queria saber mais sobre essas duas mulheres, a imprensa ficou devendo.

De Ivone Santana, o máximo que os jornais disseram é que é funcionária da Prefeitura de Santo André, que é militante do PT de primeira hora, que tinha a chave do apartamento do então prefeito Celso Daniel e era encarregada de enviar uma faxineira até lá uma vez por semana. E que não seguiu a orientação – segundo denúncia do senador Eduardo Suplicy – ‘de um tal de Dr. Ruy de proceder como uma viúva chorosa’ (Folha de S.Paulo, 8/11)

Num momento em que as lágrimas viraram componente quase obrigatório nas sessões das CPIs – lembre-se de Duda Mendonça, Delúbio Soares, Renilda Santiago etc. etc. –, a frieza de Ivone Santana chega a ser chocante. Não é, convenhamos, o que a mídia espera de uma mulher que sofreu a perda de um amor, ainda mais em situação tão trágica. Mas, em vez de chorar, ela parece ter preferido a postura de única e verdadeira conhecedora da personalidade e dos sentimentos do ex-companheiro e das circunstâncias do assassinato dele.

Desqualificou o depoimento de um dos irmãos do ex-prefeito, disse que a faxineira (que disse ter visto sacos de dinheiro no apartamento) não estava habilitada para depor e garantiu que o chefe de gabinete é o único dono da verdade. Mas nada chocou tanto quanto a resposta dela à questão da tortura do prefeito: ‘Celso foi morto com oito tiros e agora vou me apegar ao laudo? Ele foi torturado? Tortura psicológica, com certeza, tortura é uma coisa relativa que pode ser usada tanto de um lado como de outro, para que se pretende qualificar uma tortura?’.

Personalidades e comportamento

O estranho não é o comportamento de Ivone Santana – deve estar bem instruída, tem interesses a defender. Estranho é a mídia não ter dado a menor importância ao depoimento dela. Se ela é sincera, merece espaço para se explicar. Se é dissimulada, fingida, farsante, tem que ser questionada e denunciada.

Mas talvez mais estranho ainda seja a frieza da mídia com relação a Roseana Garcia, viúva do prefeito Toninho, de Campinas. Desde a morte do marido, ela tem lutado, sem sucesso, para que as investigações de crime político sejam aprofundadas. Ignorada pelos jornais das capitais, só foi destaque em Campinas, onde o marido exerceu o mandato. Mas isso muito antes do depoimento na CPMI. Entrevistada pelo Correio Popular (14/9/2005), Roseana declarou:

‘Não quero fazer palanque político. Quero dar visibilidade nacional ao crime de Antonio. Ele merece que eu registre isso na história, disse Roseana, acrescentando que irá falar na CPI sobre as falhas do inquérito. Não ter tido a quebra do sigilo telefônico naquela noite, além do fato de nunca terem achado a arma, por exemplo. Toninho contrariou interesses dos setores de transportes, imobiliário e de jogos. Toninho não faria caixa dois para nada. Ele não era político carreirista.’

Elogiada pelos parlamentares durante a sessão da CPMI dos Bingos, Roseana conseguiu parte do seu objetivo: dar visibilidade nacional à morte do marido. Mas, se esperava mais espaço na imprensa, deve ter ficado muito frustrada. Tão frustrada quanto os leitores que, depois de assistir aos dois depoimentos ao vivo, ficaram esperando um pouco mais da imprensa. Afinal, não é todo dia que duas mulheres vão ao Congresso falar da morte de seus maridos, companheiros, namorados ou qualquer outro termo que a imprensa queira usar. Não é todo dia que se tem um material tão rico para analisar.

Mais do que uma matéria política, poderíamos ter lido excelentes análises de personalidades e comportamento. Mas parece que nem mesmo quando as mulheres estão no centro de acontecimentos tão explosivos como a morte de dois prefeitos, ambos do mesmo partido, partido que está envolvido num dos maiores escândalos na história da República, elas merecem destaque. Pelo menos o mesmo destaque dado ao fracasso do ex-deputado Roberto Jefferson em sua primeira atuação como advogado após a cassação. É falta de visão ou puro preconceito?

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Jornalista