Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Primeira-dama se vinga dos jornalistas

Há algum tempo a primeira-dama mexicana Marta Sahagún anuncia que, terminado o período de governo de seu marido Vicente Fox em 1º de dezembro, quando ele passa a faixa a Felipe Calderón, o casal deixa a agitada e poluída Cidade do México e volta ao bucólico sossego da fazenda familiar, no estado de Guanajuato. Ele, para cuidar de seus negócios particulares, empresário rural bem-sucedido que é; ela, para continuar com suas obras assistenciais.


O que seria uma saída de cena sem nenhum efeito dramático ou cômico, ‘sin pena ni gloria’, como dizem os mexicanos, teve, semana passada, um desdobramento inesperado, com um gostinho todo especial para Marta. Afinal, nos seis anos de poder na residência oficial de Los Pinos ela só recebeu desaforos e ofensas de todos os lados, incluídos os de importantes figuras femininas do país. Foi criticada (e gozada) por suas alucinantes ambições políticas (sonhou em voz alta disputar a presidência), os suspeitos manejos financeiros da sua Fundação Vamos México, o acobertamento das malandragens de seus filhos do primeiro casamento, e, pior de tudo, a forma como sempre manipulou politicamente o marido presidente nos bastidores – todas essas situações denunciadas com detalhes na imprensa mexicana.


Agora, na hora da partida, ela dá a volta por cima e ganha uma batalha contra esse bando de fofoqueiros maldosos, os jornalistas.


Com efeito, em função de uma sentença civil de primeira instância de um juiz da Capital Federal, a revista semanal Processo e a jornalista e escritora argentina Olga Wornat deverão pagar a Marta uma indenização ao redor de 200 mil dólares, ‘por haver sido constatada a violação à intimidade, à honra e à dignidade da esposa do presidente Vicente Fox’.


Mamita poderosa


Segundo a própria revista Proceso, na edição com data de 22/10/2006, em artigo intitulado ‘Aos pés de Marta’, nenhuma chamada de capa como nas vezes anteriores, a primeira-dama tão logo soube da sentença saiu para comemorar com amigos e familiares. E sentenciou: ‘Ninguém pode aparecer assim, do nada, e se meter na intimidade dos outros. Não podem vir aqui caluniar e mentir simplesmente porque querem. Isso não volta a acontecer outra vez no México’.


Sem mencionar o nome do inimigo maior, é óbvio que esse alguém que veio de fora é a jornalista argentina Olga Wornat, autora de dois livros sobre o casal Fox. Para o primeiro, La Jefa. Vida pública y privada de Marta Sahagún, de 2003, Marta, numa boa-fé inacreditável para quem devia conhecer as manhas e os perigos desse tipo de publicação, abriu a estrangeira as portas da residência oficial e, mais espantoso ainda, franqueou-lhe também o coração.


Depois, chocada com o que resultou de suas conversas gravadas com Olga, negou-se a colaborar com o segundo, Crônicas desde un México desolado, de 2005, que relatava, com luxo de informações, as trambicagens de seus dois filhos que, craques no tráfico de influências com base no poder ‘de la mamita’, se enriqueceram de forma muito rápida.


Sexo frio


O que originou o processo de agora, com sentença favorável a Marta, foi a publicação, ano passado, entre um livro e outro, de um artigo da mesma Olga, na revista Proceso, xeretando em cima da anulação do casamento religioso de Marta com seu primeiro marido, Manuel Bribiesca.


A jornalista argentina é profissional competente mas de reputação polêmica, cujos métodos de trabalho pouco ortodoxos foram contestados em seu próprio país. Nessa matéria, ela afirma que Marta lhe contou que um dos motivos principais de sua solicitação ao Vaticano para anular seu matrimônio era a má relação de cama que tinha com o marido, com quem não se afinava sexualmente – ele fogoso, do tipo ‘vem quente que estou fervendo’; ela fria, do gênero ‘hoje não, bem, tô com dor de cabeça’.


Coitadinha dela


Para o juiz autor da sentença, ‘esse tipo de afirmação é um ato ilícito, pois Marta Sahagún se viu afetada em seu direito a intimidade, sofreu uma invasão em sua vida privada, saiu com sua reputação gravemente afetada’. E à jornalista Olga Wornat disparou uma advertência: ‘A senhora tem o dever de informar com apego a Constituição; ou seja, não traspassar os limites da vida privada das pessoas’. Sobrou também para a revista Proceso: ‘Como profissionais da comunicação, os senhores deveriam ter agido com a apego as norma éticas do ofício’.


Num texto surpreendentemente sóbrio, fugindo ao tom retórico e combativo da revista, a matéria narra o caso passo a passo, filigranas jurídicas no meio, e dá espaço a Marta, reproduzindo suas palavras de contentamento, embora aqui e ali cutucando a primeira-dama: ‘Ela insiste na imagem que criou de si própria como defensora da dignidade dos mexicanos e, em especial das mulheres. (…) Auto-erigida em defensora do decoro dos mexicanos. (…) Ela, a que se diz vitima de `dano moral´…’.


Quinze minutinhos


Tanto Olga Wornat como a revista Proceso deverão apelar da sentença. Mas as primeiras reações não demoraram em chegar: de Paris, a organização Repórteres sem Fronteiras criticou o castigo imposto pela justiça mexicana: ‘Não nos cabe contestar os argumentos do juiz, mas nos parece que a soma da indenização pedida é exorbitante em relação ao prejuízo sofrido e, sem dúvida, não seria tão alta se a querelante não fosse a primeira-dama do país’.


O curioso do caso, talvez seu aspecto mais contraditório, é que foi justamente na gestão presidencial de Fox que o México entrou numa época de ampla liberdade de expressão, quando os meios de comunicação, aqui incluídos talentosos e ácidos chargistas (Naranjo, Carreño, Omar, Boligán, Helioflores, Palomo) deitam e rolam todos os dias em cima dos poderosos, dos corruptos, dos vaidosos, dos incompetentes, sem sofrer, como nos velhos tempos, ameaças e pressões. E sempre brandindo a bandeira da liberdade de expressão, nesses anos todos o casal Fox agüentou firme todo tipo de críticas e pauladas.


Por tudo isso, neste momento, Martita, como é conhecida no México, goza em grande estilo seus 15 minutos de vingança. Em tempo: ela anunciou que destinará os 200 mil dólares de indenização ‘a organizações não-governamentais dedicadas a crianças com câncer, a mulheres maltratadas e ao combate à pobreza’.

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Jornalista e escritor radicado na Cidade do México