Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Propaganda para analfabeto ler

Mais uma lei risível foi aprovada pela Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro. Pelo menos, dessa vez, foi uma lei, e não apenas um nome de rua ou praça, decisões que tomam a maior parte do tempo dos legisladores cariocas. A lei 5.033, de autoria do vereador Roberto Monteiro (PCdoB), obriga qualquer anúncio publicitário que utilize palavras estrangeiras a trazer também a sua tradução para o português. Pergunta inocente: mesmo aquelas palavras sem equivalentes em nosso idioma? Confesso que estou curioso para saber como termos como drive-thru serão traduzidas.

A proposta sancionada pelo prefeito Eduardo Paes irá limitar uma das mais criativas formas de obter a atenção do consumidor através do discurso publicitário. São muitas as marcas que se utilizam desse recurso em suas campanhas. Lembro de um anúncio atual da Volkswagen e outro, também recente, da Hortifruti. No primeiro, a empresa tenta destacar a durabilidade dos veículos que produz relacionando-os com a sua origem alemã, país que tradicionalmente produz carros de alta qualidade. Para isso, recorre ao slogan (‘Frase concisa, de fácil percepção e memorização, que resume as características de um produto ou serviço, ou uma de suas qualidades ou ponto de venda, usada e repetida inalteradamente nos anúncios de uma firma’ – dicionário Michaelis de português) de sua matriz alemã, Das auto.

A ‘perversão’ das tradições

A brincadeira singela do anúncio certamente perderia toda a sua eficácia caso tivesse que incluir uma legenda explicativa para o slogan: ‘O Carro’. No caso da Hortifruti, maior rede de hortifrutigranjeiros do país, um outdoor (‘Grande cartaz de propaganda colocado à margem das vias públicas’ – dicionário Michaelis de português) veiculado há poucos dias para lançar uma salada pronta, traz a seguinte frase: Fast-Good. Em respeito aos puristas da língua, incapazes de entender um simples trocadilho que não tenha sido repetido mais de cem vezes em Zorra Total, explico: o anúncio faz alusão ao conceito de fast-food, geralmente visto como um tipo de alimento pouco nutritivo e de sabor artificial, para mostrar que o seu produto não é somente rápido e prático de se adquirir, como também gostoso e nutritivo.

Obviamente, as agências irão se ajustar às novas restrições e continuarão produzindo boas peças com o que sobrou à mão. Se os publicitários chineses conseguem sem a mínima liberdade de expressão, não vai ser mais uma lei estabanada que nos irá impedir de continuar entre os países mais criativos do mundo – pelo menos na publicidade. Contudo, não é esse o ponto central da questão. Se uma proposta sem fundamento como essa é aprovada sem alarde, estamos a um passo da proibição de trocadilhos e neologismos em nome de uma demagógica defesa da norma culta da língua portuguesa. Sabe-se lá o que pode vir pela frente…

Os puristas da língua portuguesa torcem o nariz contra os estrangeirismos que ‘invadem’ nossas ruas e vitrines, mais movidos por seu anti-americanismo do que pela defesa do português. Nunca os ouvi reclamando da influência francesa sobre nosso idioma até meados do século passado, muito mais intensa, diga-se de passagem, do que a norte-americana hoje. O que falar então das palavras alemãs, italianas, japonesas, árabes e espanholas, que há muito ‘corrompem’ nossa pobre língua. Isso sem mencionar a tradições indígenas e africanas que ‘perverteram’ completamente isso que ainda chamamos de português.

Não existe ameaça estrangeira

Quão desagradável não seria se tivéssemos que utilizar, cotidianamente, termos como nádegas, insulto e dormitar, ao invés das palavras bunda, xingar e cochilar, que nos foram presenteadas pela cultura bantu. Aliás, não há corrupção maior de uma língua do que a sua unificação forçada com outro idioma. Foi o que fizeram recentemente através de um acordo ortográfico que busca camuflar as diferenças gritantes entre o português de Portugal e do Brasil, ameaçando nossa cultura com as terríveis ideias (assim mesmo, sem acento) estrangeiras que arrancam do povo brasileiro a sua nacionalidade.

Alguns acreditam que a língua é o patrimônio primordial de uma cultura. Sim, sim… Mas de qual língua estamos falando, cara pálida? Daquele idioma truncado falado no Vale do Jequitinhonha, do emaranhado de gírias dos morros cariocas, do portunhol dos pampas ou do dialeto rebuscado dos acadêmicos? Se vamos preservar o português, ou o ‘brasilês’, já que paramos de falar a tal língua lusitana faz tempo, comecemos por ensiná-lo aos próprios brasileiros. Somos estrangeiros em nossa própria terra, pois grande parte da população não sabe ler, escrever e muito menos falar português corretamente.

E olha que, de norte a sul, todos nós, brasileiros, nos entendemos mais ou menos – graças à Rede Globo, é claro, e não ao Ministério da Educação. Nada comparável aos mais de dez idiomas oficiais de uma África do Sul ou aos pequeninos países europeus onde nos perdemos em tantos dialetos. Não existe, portanto, a ameaça estrangeira que vem minando nossa cultura através da perversão de nossa linguagem. E se existisse tal coisa, não seria através da proibição da publicidade que sanaríamos o problema, já que permaneceriam as músicas, os filmes e as revistas estrangeiras. Meios certamente mais poderosos que um simples sale na vitrine da loja chique.

Aulas gratuitas

A língua é mutante, queiram os puristas ou não, e continuará mudando todos os dias graças às influências estrangeiras ou locais. Sorte dos produtores de dicionários e daqueles que, como eu, apreciam a beleza dos neologismos e novas apropriações. Não podemos esquecer que se temos alguma qualidade como nação, essa é a nossa persistência em impedir que qualquer cultura alienígena se feche em si mesma neste país. Não perdoamos ninguém: judeu, alemão, russo, japonês… todos acabam caindo no samba por aqui. É essa característica fantástica que precisamos defender em nossa cultura e servir de exemplo para o resto do mundo.

Se temos problemas lingüísticos no Brasil, esses se resumem à deliberada exclusão imposta ao seu povo pela linguagem dos textos que mais profundamente influenciam suas vidas: os rebuscados termos políticos, os arcaísmos jurídicos, os jargões econômicos e o cientificismo médico. Não há estrangeirismos mais maléficos para a sociedade brasileira do que o latim da ação judiciária ou o dumping da análise econômica feita pelo noticiário. Esses, sim, merecem reformas e imposições quando levados ao público.

Quanto às vitrines e outdoors, deixem-nas em paz! Um comerciante que utiliza palavras pouco compreendidas, nessa linha de pensamento, vende para poucas pessoas e acaba jogando contra o próprio negócio. Impor a utilização apenas da norma culta do português à propaganda da iniciativa privada, além de limitar a criatividade alheia, atenta contra a liberdade de expressão. É, como sempre, uma resposta equivocada a questões complexas e que nunca tocam o centro da questão: contra o mosquito da dengue, calças; contra marquises que desabam por falta de fiscalização, proibição das marquises; contra a falta de moradias e a crescente violência, muro nas favelas.

Para finalizar, arrisco dizer ainda, com certa ironia (mencionei a ironia para uma melhor compreensão dos puristas, o que acaba tirando todo o seu sentido), que o povo estaria perdendo com isso seu único contato com um idioma estrangeiro e assim acabando com as aulas gratuitas que a iniciativa privada tem proporcionado aos transeuntes de nossas cidades (fim de ironia). Não nos esqueçamos que o inglês será matéria exigida em breve no Enem.

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Publicitário e mestrando em História na UERJ, Rio de Janeiro, RJ