Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quando o geógrafo se mete a jurista

Não aprecio o estilo do ex-ministro Antônio Palocci e detesto os rompantes jurismidiáticos do ministro Gilmar Mendes, presidente do STF. Portanto, deveria concordar com as observações feitas por Demétrio Magnoli em seu artigo ‘Esse crime chamado justiça‘, publicado no Estado de S. Paulo (3/9/2009). Deveria, mas não concordo.

Minhas razões para ficar ao lado de Palocci e Gilmar Mendes e contra Magnoli são bastante singelas. Eu não sou sociólogo ou geógrafo, mas advogado (advogado, há duas longas décadas).

Poderia me recusar a discutir as razões do convencimento jurídico do douto sociólogo e geógrafo que se põe a condenar o ex-ministro absolvido pelo STF. Mas não vou fazer isto. Magnoli adentrou na minha área de conhecimento e tenho o dever de ensinar-lhe algumas coisas que ele precisa aprender.

Aprendi que a Constituição em vigor garante aos acusados três coisas fundamentais: devido processo legal, direito de defesa e presunção de inocência. Quando o Ministério Público denuncia um cidadão, torna-se legalmente obrigado a fazer, no processo e sob o rigor do contraditório, prova robusta da autoria do crime, da materialidade do delito e das circunstâncias agravantes.

Informaçãojornalística não é prova válida

No sistema jurídico brasileiro, não há crime sem prévia definição legal, nem condenação legítima por presunção de autoria ou de conduta criminosa. Cada ação ou omissão humana considerada criminosa é definida de maneira precisa e o Poder Judiciário não pode considerar crime uma conduta atípica (ou seja, uma conduta que não corresponda à definição legal). Alguns crimes exigem determinadas condições pessoais da vítima (só mulher pode ser vítima de estupro, por exemplo), outros dependem de requisitos pessoais do autor do delito (só servidor público pode cometer crime de peculato, concussão e corrupção passiva, por exemplo).

Ao juiz brasileiro é conferida ampla liberdade para julgar conforme seu convencimento. Mas as decisões judiciais sempre devem ser fundamentadas nas provas válidas colhidas no processo. As provas ilícitas ou irrelevantes devem ser desconsideradas. As informações e especulações divulgadas pelos meios de comunicação não constituem prova dos fatos que foram enunciados pelos jornalistas. A única exceção a esta regra ocorre quando o próprio material jornalístico é utilizado como prova numa ação criminal ou civil ajuizada pelo ofendido.

O Judiciário não pode considerar prova válida a informação jornalística por uma razão absolutamente singela: os fatos enunciados nos jornais não são colhidos por uma autoridade judiciária ou sob o rigor do contraditório. Portanto, mesmo que a imprensa afirme que um cidadão é criminoso e divulgue fatos que apóiam sua tese, o Judiciário não pode levar isto em conta ao julgar o réu. O juiz nunca pode deixar de respeitar o devido processo legal, o direito de defesa e a presunção de inocência do acusado, sob pena da sua decisão ser revogada.

Correção e rigor jurídico

Antônio Palocci foi denunciado pela violação de sigilo bancário de outrem. A prática deste crime exige que seu autor tenha a custódia da informação que deveria ser preservada. Mas Palocci era Ministro da Fazenda, e não bancário. Ele não tinha acesso pessoal às informações confidenciais, nem condições de se apropriar pessoalmente delas para divulgá-las. Este relevante detalhe jurídico seria mais do que suficiente para sua absolvição.

Em razão do que consta da nossa Constituição (que Magnoli conhece como sociólogo, não como jurista), o juiz deve aplicar a legislação penal com rigor e sempre de maneira restritiva. Se o Poder Judiciário seguisse os conselhos jurídicos do senhor Magnoli, todos os jornalistas que divulgaram as informações bancárias que vazaram também deveriam ser condenados por quebra de sigilo bancário. Não é este o caso porque há uma diferença entre cometer o crime de violação de sigilo bancário e divulgar as circunstâncias do delito, que teria sido cometido por razões políticas.

Felizmente, o articulista do Estadão não ocupa uma cadeira do STF. Se o fizesse, a liberdade de imprensa deixaria de existir no Brasil mais rapidamente do que na Venezuela de Hugo Chávez. Neste caso, o senhor Gilmar Mendes agiu com correção e rigor jurídico. Merece ser aplaudido, e não execrado.

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Advogado, Osasco, SP