Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Reflexões de um dono de jornal

Na ressaca das eleições de 1º de outubro, uma das peças indeléveis foi o artigo “Yankees e rebeldes”, publicado na Folha de S.Paulo (5/10/ 2006). Nem tanto pela qualidade, elegância e boa prosa do texto. Nem mesmo pelo inusitado de conceitos. As idéias nele expostas, se por idéias entendemos tudo que sai de uma cabeça, longe estão de ser novas. Pelo contrário, são velhas e velhíssimas. Mas assim escritas, talvez sob inspiração de um ghost writer, elas passam a ser um documento histórico de como a elite de São Paulo vê e mira os outros brasileiros.

O autor, que se assina como Otavio Frias Filho, ao pé do texto apresenta-se modesta e virtuosamente como diretor de Redação da Folha. Mais, bem mais que isso, a maioria dos brasileiros sabe. Ele é um dos donos do periódico. E para nada mais acrescentar, vamos ao documento, que abre assim:

“Muito se tem escrito sobre a divisão do Brasil em duas metades que emergiu no domingo. Os jornais trazem mapas onde Rio, Minas, o Nordeste e o Norte aparecem em vermelho (Lula), enquanto São Paulo, o Sul e o Centro-oeste estão em azul (Alckmin).

Essa divisão entre ‘yankees’ e confederados em nossa ‘Guerra Civil’ eleitoral já foi enfocada sob seus dois prismas mais evidentes, o antagonismo de classe e a desigualdade geográfica. Grosso modo, o primeiro opõe as classes populares às classes médias. O segundo ângulo opõe o ‘Norte’ ao ‘Sul’”.

O título “Yankees e rebeldes”, de cara, é infeliz. O dono da Folha deveria procurar outro ghost ou melhor reflexão. Na Guerra Civil dos Estados Unidos, os yankees, do Norte, eram o progresso, das liberdades civis e econômicas, enquanto os “rebeldes”, os confederados do Sul, eram o atraso, sob todos os pontos de vista. Por outro lado, ou quem sabe pelo mesmo, na Guerra Civil norte-americana, a cor vermelha era do uniforme dos sulistas, e o azul, dos yankees, para maior confusão entre o título e as primeiras linhas do texto.

Paraísos terapêuticos

O frio objetivo do autor, com tão leve e histórica introdução, imaginamos ser diferente de proclamar o Norte e Nordeste do Brasil como a terra da civilização brasileira. Confusão das brabas portanto já no início, porque as cores da história, yankees, rebeldes, o Norte e o Sul do Brasil da eleição, não concordam entre si.

Ah, mas talvez ele queira passar uma ironia, fina, sutil, como imagina possuírem as pessoas da sua classe. Bom, se assim é, ainda assim, não o consegue. Uma das grandes inteligências da ironia é que ela afirma o contrário do que declara, quando leva ao ridículo o oponente, pelo que afirma para terceiros. Quando presente a ironia, o leitor ri para o texto. Quando ausente a ironia, o leitor ri do texto. Paciência. Entre yankees e rebeldes o texto continua. Adiante. Não sejamos tão exigentes.

“Descontado o esquematismo desse tipo de recortes, há um terceiro prisma a acrescentar. É aquele que separa as regiões onde a presença do Estado na economia e na vida das pessoas ainda é muito grande (vermelho), daquelas áreas nas quais o peso do poder público é menor (azul). O capitalismo se enraizou há muito tempo em São Paulo e no Sul, onde o dinamismo econômico prescinde, ao menos em boa parte, do Estado. Não por acaso é a região mais sensível ao único tema novo, em termos eleitorais, que surgiu nesta eleição: o da redução da carga tributária hoje próxima de 40% do PIB”.

O nível de leitura do ghost writer ou do autor anda muito abaixo do sul. A julgar pelos três parágrafos copiados até aqui, faltam-lhe história, realidade, melhores publicações de notícias, um pouco mais de lógica, alguma concatenação do pensamento. Apenas, porque:

1. Quando um outro analista escreve que Lula obteve mais votos, em números absolutos e relativos (queremos dizer, totais de votos e percentuais, senhor Frias) nas regiões Norte e Nordeste, isto não é ser esquemático. A leitura dos mapas das eleições indica que a maioria dos eleitores do Norte e Nordeste votaram a favor do governo Lula, os do Sul, contra. E… alguma dúvida?

2. De onde mesmo foi retirada a informação de que a presença do Estado é maior nas regiões Norte e Nordeste que no Sul? Historicamente, a tendência do Estado é seguir o mercado, e com isto os investimentos públicos têm se concentrado no Sul/Sudeste do Brasil. Os desníveis, as desigualdades entre as regiões brasileiras se aprofundaram com essa política “natural”. Mas se o dono da Folha deseja dizer que no governo Lula as regiões Norte e Nordeste receberam um olhar além de um olá, vale dizer, investimentos que nunca na História receberam antes, bem, neste sentido de comparação, o Estado é maior entre nós – os yankees, ou rebeldes, da sua visão.

3. “O capitalismo se enraizou há muito tempo em São Paulo e no Sul…”. O que é muito tempo para o senhor que se assina como Otavio Frias Filho? Um tempo além da própria idade, mas que não vá além do nascimento do seu avô? Se assim é, o capitalismo se enraizou em São Paulo há muito e muito tempo. Talvez suas leituras não saibam, mas o capitalismo é bem mais velho em alguns estados yankees ou rebeldes do Nordeste. Em Pernambuco, por exemplo. Mas não o interrompamos, porque as terras paulistas e do Sul são “…onde o dinamismo econômico prescinde, ao menos em boa parte, do Estado”. Como escreveriam os adolescentes na internet, rs, rs, rs – e com isto não querem dizer Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul. Onde, em que lugar do mundo o “dinamismo econômico” prescinde do Estado? Nos Estados Unidos, talvez? Queremos dizer, nos Estados Unidos sem empresas de petróleo, sem a invasão do Iraque, sem agricultura, sem armas, sem indústria, talvez? Se com isto ele quer dizer o Estado que não distribui Bolsa Família na região dos Jardins, sim, para isto o dinamismo da laboriosa classe empresarial não precisa do Estado.

4. Mas São Paulo e o Sul… “Não por acaso é (sic) a região mais sensível ao único tema novo, em termos eleitorais, que surgiu nesta eleição: o da redução da carga tributária hoje próxima de 40% do PIB”. Dois parágrafos, e que mundo! Que mundo de um ilustre filho da elite brasileira se revela. Em nome da justiça, devemos admitir que um ghost writer não ousaria tanto. O texto é de Otavio Frias Filho, sem dúvida. Pelo parágrafo se conhece o gigante. Em um programa de crescimento intelectual, recomendaríamos: não leia tanto a Veja, senhor. Ela faz mal aos miolos, à vista, ao verbo, ao semblante. Assim como a tuberculosos se recomendava uma viagem a paraísos terapêuticos, recomendamos, vá a outras fontes. Mude de noticiário, de rotina, de guia eleitoral. Pois que região de São Paulo foi assim tão sensível ao tema dos 40% do PIB? A que o ilustre Frias Filho freqüenta? Adiante.

Tempo e sensibilidade

Pulado um parágrafo dispersivo, que em nome da inteireza da reprodução do texto devemos respeitar…

“Embora se atribua a inclinação anti-Lula no Centro-Oeste à crise da agricultura, essa região se mostra como típica geografia de fronteira, um eldorado de oportunidades, empreendimento pessoal e terras abundantes. Lugar onde vigora o ‘cada um por si, Deus por todos’”.

…pulado isso, chegamos ao cerne da questão, ao busílis:

“Em grande parte do Nordeste, e mesmo em Minas e no Rio, o cenário é outro. São regiões onde a onipresença do Estado remonta ao período colonial; são lugares onde o poder do Estado para contratar, subsidiar, autorizar verbas segue enorme, até por compensar a relativa debilidade da economia privada”.

Isso acima deveria estar gravado em placa com letras de ouro. É o óbito de uma classe. Que se deseja mostrar ilustrada, educada, inteligente, culta. Pois aqui jaz a máscara de um preconceito entre brasileiros, aqui desce como luva um preconceito de classe. O que antes atingia Lula, chamado de apedeuta pelo mesmo Frias em outro artigo, o que antes atingia de raspão a sua origem material e de nascimento – um operário, um nordestino – agora se dirige com mais precisão à gente que lhe é semelhante.

Antes, esse Lula não era um dos nossos, deles, agora rejeitá-lo significa rejeitar também os bárbaros que vivem em terras incivilizadas. Percebem? Se não fossem esses merdas, o Brasil seria outro, só São Paulo, só São Paulo, mas um São Paulo conforme a feição dos melhores, daqueles que vivem em regiões do capitalismo forte, enraizado, que não precisa do Estado.

Com o objetivo de atingir os que não agem conforme um arbítrio, o preconceito não precisa de ciência, cultura, inteligência e informação, pois se tais qualidades tivesse, não seria preconceito. Vejam e mirem. O Nordeste, Minas e Rio de Janeiro “são regiões onde a onipresença do Estado remonta ao período colonial”, e por isso votam em quem votam.

O articulista, digo, o dono do jornal Folha de S.Paulo, deveria conhecer um pouco mais de história, de economia, ou pelo menos conhecer Celso Furtado, um nordestino que apesar da origem é um dos grandes de todo o mundo civilizado. Se o conhecesse, saberia que o pensador paraibano diagnosticou que na industrialização do Brasil, nos anos 1950, o Nordeste foi espoliado pelo Estado para financiar o crescimento do Sudeste.

Como lembra a economista Tânia Bacelar:

“Naquela época, o Nordeste tinha uma balança comercial com o exterior positiva, e o país tinha uma política cambial que era correta, mas tirava a vida do Nordeste. Eram duas taxas de câmbio: quem importasse equipamento tinha câmbio mais barato”.

São Paulo, portanto, recebia renda do dinamismo econômico dos lugares que vivem no tempo da colônia.

Em resumo, para respeitar o tempo e a sensibilidade do leitor. Para Frias, o nordestino é antes de tudo um inferior. Mas procria muito, sabe-se. Como larva, como bicho. De sorte que Frias bem pode esperar uma praga de nordestinos, em revoada de Norte a Sul para São Paulo, quando 29 de outubro chegar.

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Jornalista e escritor, Recife (PE)