Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Reflexões sobre um suicídio e o papel da imprensa

Um homem idoso, célebre, consagrado, talentoso, se suicida. Confidências, rumores, boatos, talvez maledicência, começam a circular. Seus amigos – os que conhecem mais ou menos sua vida privada, isto é, protegida do olhar do outro, dos outros, sua vida consigo mesmo, essa porção de vida secreta que todos temos, em fantasia ou em realidade, que é de acesso proibido a todos ou quase todos – que o conheciam, o amavam, o estimavam, agem, intervêm para que o boato não seja divulgado.

A imprensa, os jornalistas informados do rumor, é seu mister, fiéis à ética que impõe que não se confunda ‘privado’ com ‘público’, decidem silenciar, calar o boato mesmo que ele dissesse a verdade sobre as razões desse suicídio, como se pudéssemos verdadeiramente, com absoluta certeza, conhecer as razões, as verdadeiras razões, de um suicídio. Os jornalistas se calam. Isso é louvável. Sabem eles que assim respeitam esta ética que implica também proteger da maledicência e dos olhares indiscretos a dor dos próximos, esposa e filhos.

Lembremos que Freud, quando escreveu com o embaixador americano W. Bullit seu livro sobre o presidente W. Wilson, falando sobretudo de seu delírio paranóico, exigiu que só fosse publicado depois da morte da viúva do presidente. De fato, o livro só saiu em 1947, depois da morte da viúva e oito anos depois da morte de Freud.

Hoje, 20 anos depois do acontecimento, 20 anos depois dessa atitude digna dos jornalistas, um dos que participaram desse gesto nobre denuncia publicamente essa atitude, declara que hoje não ocultaria o que sabia, posição compartilhada por outros colegas.

Essa mudança de atitude me leva a pensar em duas perguntas interligadas, ainda que distintas, uma conjuntural, a outra mais fundamental, que implicaria uma reflexão sobre a ética, hoje, do jornalismo e do jornalista.

A essas duas perguntas, responderemos sucintamente.

A dualidade humana

Primeira pergunta: o que aconteceu que pode ter levado à mudança do jornalista e de outros que concordam com ele? A resposta implica uma análise sociológica, isto é, ideológica e política. Ela conduziria não a atirar pedras nos jornalistas que mudaram de idéia, mas a considerá-los, antes, como vítimas de um sistema no qual a pressão econômica é prioritária: o imperativo da tiragem, da audiência para a TV, transformou radicalmente a mídia, propriedade hoje de alguns grandes grupos capitalistas com ramificações com multinacionais, em meio não mais de informação e até de educação – tarefa que inclui a reflexão – mas de condicionamento de um público que se deve distrair, atrair e excitar por qualquer meio, ainda que sejam os mais sórdidos e sem nenhuma relação com a verdadeira informação.

O jornalista se vê, assim, freqüentemente, preso num dilema: ou ele é fiel a sua ética, cala o espetacular, evita dar vazão ao lado voyeur do grande público, mas por isso mesmo ele é apontado como responsável pelas quedas de vendas do jornal ou a queda de audiência da TV e corre o risco de perder o emprego, ou, preocupado em manter seu emprego e seu ganha-pão, quem sabe vantagens periféricas, submete-se e se faz intermediário do boato, sem se preocupar com os estragos de ordem moral ou psicológica que isso possa ocasionar.

Segunda pergunta: por que o que se costuma chamar ‘o grande público’ é tão ávido por ler, escutar e ver tudo sobre a vida ‘privada’ de pessoas célebres? Por que este mesmo ‘grande público’ abandona a mídia que não dá esse alimento, pão e circo, o que os imperadores romanos, para desespero de Sêneca e Cícero, consideravam a melhor maneira de controlar a plebe?

O ser humano não é a priori intelectual, artista ou filósofo, é antes de tudo um ser forjado por seus instintos, que em psicanálise chamamos de pulsões: pulsão de vida, primeiramente, que guia o ser humano para a procura do prazer mais fácil e imediato, o que lhe dá menos desgaste intelectual; pulsão de morte que o instala na repetição, no hábito, mas o guia também para a destruição, para a guerra sob todas as formas, guerra no cotidiano ou guerra no sentido clássico do termo, pulsão de morte que mostra sua extraordinária capacidade de crueldade – nisso o homem é ‘superior’ aos animais que matam para comer mas não torturam. São esses, Eros e Tánatos, os dois componentes da dualidade humana.

Cada uma dessas pulsões se amalgama com a outra e subdivide-se em diversas modalidades, tendo seu lado positivo e seu lado negativo, e é assim em relação ao desejo de ver, de descobrir, de ver tudo, de ver a beleza mas também o íntimo do outro, o ‘privado’. Assim é a pulsão epistêmica que, como a anterior, pode apresentar um aspecto positivo, desejo de conhecer, de aprender o fundamento da cultura mas também o lado negativo e destruidor quando esse desejo de saber está a serviço da pulsão de poder e conduz ao controle e ao domínio do outro.

Informar ou anestesiar?

Regular o pulsional, impor-lhe limites, implica que o prazer não pode nunca ser total. Isso provoca o que Freud chamou de mal-estar na civilização, mas é isto que funda esta civilização, esta cultura sem as quais a humanidade se destruiria para se submeter aos mais poderosos que, depois de terem devorado os mais fracos, se devorariam entre si.

Tornar-se veículo de boatos é ceder aos imperativos do poder econômico e político, satisfazendo os gostos mais mórbidos do ‘grande público’. É não somente desonrar os que são o alvo desses boatos, mas abandonar as regras da civilização e da cultura: dizer as razões que puderam (e ninguém pode jurar conhecer) levar um homem a se suicidar é, de certa forma, roubar-lhe sua morte depois da morte, não é de forma alguma uma ‘informação’ que acrescente algo ao leitor ou ao telespectador, que possa fazê-lo refletir, é fazê-lo pensar que há pessoas, jornalistas, que são pagas para ir olhar pelo buraco da fechadura do quarto de tal ou tal personagem célebre e contar o que viram.

É isso o dever de informar? Isso é informar ou anestesiar o leitor? Onde ficam a honra e a ética do jornalismo? Pode-se falar ainda de jornalismo agindo assim e confundir essa prática que cultiva o sórdido, o voyeurismo, a animalidade com essa profissão que em seus melhores aspectos faz parte da democracia e para a qual sabemos que hoje ainda, no século 21, há dezenas de jornalistas presos por terem denunciado a corrupção de alguns regimes, desrespeito aos direitos humanos, quando se sabe que outros deixaram suas vidas nos diferentes campos de batalha no exercício da profissão de informar.

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Psicanalista