Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Remelixo na Bahia

Recentemente, um pouco antes do último Carnaval, os baianos mais conscientes e apaixonados pela Bahia ficaram severamente feridos no orgulho porque o Recôncavo baiano foi considerado um dos lugares turísticos mais sujos do Brasil. Vamos colocar o preto no branco. A sujeira (de toda sorte) não é um privilégio da Bahia e é injustiça direcionar os holofotes para a terra consagrada por tantos ícones de nossa arte e culturas, lugar tão rico de nossa história e ciclos produtivos – a Nova Guiné, Meca da Negritude e Negrolândia, como diziam os europeus que lá aportavam no século 18, segundo antropólogos e historiadores.

Há lixo por toda parte do Brasil e do mundo e isso é um problema grave. Como é grave o desinteresse da mídia pelo lixo como notícia… Ora, deve ser porque o lixo é tão comum, onipresente, então não dá manchete. Mas esta semana, após a festa marcada pelo rebolation na Bahia, ele veio à tona novamente, o lixo da folia do Carnaval 2010, o remelixo.

O campeão de surfe Bernardo Mussi, Bonga, e o biólogo, canoista e mergulhador Francisco Pedro F. Neto, o Kiko, estimulados pelo ex-fotógrafo de competições de surfe Fabiano Barreto, que dirige a organização não governamental Global Garbage, com sede na Alemanha, resolveram denunciar o crime ambiental que os foliões, não necessariamente apenas baianos, cometeram impunemente. Após se refestelarem no Carnaval, ignorados pelos organizadores e autoridades ambientais, abandonaram ou literalmente atiraram no mar uma quantidade monumental de lixo, que acumulou no fundo do mar na área do Farol da Barra, em pleno centro turístico da nossa Roma africana, nas palavras de Mãe Aninha (em 1940), fundadora do terreiro Ilê Axé Apô Afonjá.

Quanta boa vontade…

Kiko e Bonga ficaram impressionados com o amontoado de lixo no fundo do mar, na maioria latinhas de cerveja revelando claramente a sua origem e data de abandono, porque eles costumam mergulhar ali e nunca viram tamanha sujeira. Munidos de prancha de surfe, sacos plásticos e câmera fotográfica, chamaram outro amigo com uma câmera de filmagem e resolveram retirar parte do lixo e exibi-lo na calçada para os turistas e transeuntes, talvez alguns dos mesmos que tenham jogado uma ou outra latinha no mar. O passo seguinte foi procurar um veículo de comunicação para alardear a denúncia.

Passou uma semana até que A Tarde, de Salvador, deu ‘o furo’ fornecido pelos ecologistas voluntários, provavelmente porque antes eles publicaram no blog da Global Garbage e a ‘notícia’ começou a circular pela internet. Saíra também na Rádio Metrópole – bom saber que as rádios continuam pautando os jornais, parece. Mas eles queriam mais destaque ainda e procuraram jornais de canais de televisão, sem muito sucesso, inicialmente. Até que a TV Record fez matéria, mas infelizmente não deu em rede nacional. A TV Aratu ficou de oferecer ao SBT, a TV Bahia, afiliada da Globo, e a GNT ‘demonstraram’ interesse. Quanta boa vontade.

Cemitério de lixo

Mas em breve todos esses mesmos canais certamente darão a notícia, no prime time, de que ‘pesquisadores americanos, velejando pelo mundo, farão uma travessia do Rio de Janeiro à Cidade do Cabo, na África do Sul, para colherem amostras de lixo marinho do giro tropical do Atlântico Sul’. Trata-se da Fundação Algalita de Pesquisa Marinha, sediada em Santa Monica, Califórnia, que está apoiando a iniciativa de um grupo de pesquisadores e ecologistas na divulgação de manchas de lixo marinho que podem ser vistas por satélite, tamanha é a quantidade de lixo marinho que circula pelo globo terrestre navegando com correntes oceânicas – transportando espécies exóticas e poluentes orgânicos persistentes.

Ocorre que não há meios de se limpar o mar dessa quantidade de lixo marinho. Não se trata de pedaços de lixo visíveis a olho nu, mas de minúsculas partículas fotodegradadas, irremediavelmente se internalizando na cadeia alimentar, desde o fundo do mar até a superfície, desde antes do zooplancton, até os filtradores, moluscos, peixes e aves marinhas e, obviamente nos tecidos adiposos de seres humanos.

Há também uma teoria, de oceanógrafos dedicados a estudarem as correntes oceânicas, de que um pedaço de lixo largado na costa africana acaba, em poucos meses, chegando no litoral baiano. O próprio Fabiano Barreto verificou, em 2001, uma espécie de cemitério de lixo ao longo das areias da Praia do Forte até a Costa dos Coqueiros, lixo este com código de barra e endereço de fabricação, isto é, com sua origem facilmente identificável – em primeiro lugar, de fonte marinha, abandonado de navios; em segundo lugar, não brasileiro, de nacionalidade nórdica e norte-americana, entre outras.

Dizem os organizadores do Carnaval baiano que têm um ano pela frente para planejar uma forma de evitar o mesmo descarte criminoso de lixo no mar da Bahia. Mas a Bahia é uma festa só o ano inteiro, então o lixo continuará sendo jogado no mar até 2011?

Matéria que ainda vai dar muito pano pra manga.

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Escritor e jornalista