Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Repórteres entre o crime e a obrigação jornalística

Na redação, tocou o telefone do atendimento ao leitor. Mas uma ligação se sobressaiu dentre as aproximadamente 50 que o jornal Diário Gaúcho recebe por dia. A fonte, que não quis se identificar, falou sobre um comércio de ossos humanos no Campo Santo do Cemitério da Santa Casa de Porto Alegre, local onde são enterrados os indigentes e indivíduos cuja família não tem condições financeiras de pagar o funeral. O informante deu detalhes importantes sobre o esquema, forneceu nomes de funcionários que cometem o delito e o que exatamente era vendido. Assim que souberam da relevância do tema, o editor-chefe Alexandre Bach e o editor-adjunto Claiton Magalhães decidiram investir na pauta. O repórter Diego Figueira se prontificou a realizar a reportagem. Mas era preciso uma mulher, já que se fosse um casal se passando por estudantes universitários a história seria mais verossímil. Então, a repórter Aline Custódio foi recrutada para a missão.


No dia seguinte, os dois jornalistas encontraram a dupla Sandro e Isaque, funcionários do cemitério. Ao se identificarem a Sandro como estudantes de Medicina e Odontologia, Diego lançou a pergunta de cara: ‘Temos colegas de faculdade que disseram que aqui era possível comprar ossos. Você consegue o material?’ ‘Pois é, isso é complicado’, respondeu o funcionário, que parecia muito desconfiado. Os repórteres insistiram que precisavam de uma mandíbula e de peças grandes, como um fêmur. ‘Dentes é muito fácil, mas outros tipos de ossos, eu não estou acostumado’, respondeu Sandro Luís Martins. ‘E você não conseguiria um crânio?’, questionou o repórter. ‘Tá, pode ser. Mas vocês vão ter que trazer uma mochila, então’, recomendou.


O coveiro contra o jornalista


As duplas combinaram que se encontrariam na segunda-feira (10/9) para fechar o negócio, com a condição de que os ‘estudantes’ entrassem pelos fundos do cemitério. Nesse dia, o repórter-fotográfico do Diário Gaúcho André Feltes acompanhou a negociação com uma câmera posta em uma sacada próxima do Campo Santo. Tudo ocorreu como o esperado. A compra foi feita. O material foi deixado por Sandro num local afastado e ordenou que o dinheiro (R$ 80) fosse deixado embaixo de um tijolo colocado de propósito pelo vendedor. Minutos depois, o coveiro foi ao local buscar o pagamento. A equipe do jornal fez fotos das peças e comunicou à titular da 2ª Delegacia de Polícia, Adriana Regina da Costa, para receber o material e fazer a ocorrência.


A reportagem causou repercussão na sociedade gaúcha e inflamou a interminável discussão sobre ética jornalística. A pergunta que paira é a seguinte: Aline e Diego cometeram um crime ao comprar os ossos, ou o ato se justifica em razão do interesse público? Para a professora Ana Cláudia Nascimento, de Ética do Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS, a relevância do tema é indiscutível, mas o jornal pecou em expor dois profissionais a participar de um ato ilícito previsto no Código Penal nos artigos 210 (violação de sepultura) e 211 (destruição, ocultação ou subtração de cadáver). ‘Eles erraram também ao se passar por estudantes para justificar o contato com os coveiros. Isso, sob o aspecto de ética jornalística, é totalmente incorreto porque o jornalista deve se identificar como tal.’


Segundo o editor-adjunto Claiton Magalhães, ‘seria impossível realizar a matéria sem efetuar a compra das peças. Para flagrar determinadas ações, é inevitável que o repórter se envolva, seja como cidadão ou como profissional. Nesse caso, nós cometemos o ato ilícito temporariamente para ter provas de que esse material realmente era vendido’. No entanto, para a professora Ana Cláudia, o jornalista jamais deve cometer o delito para mostrar que ele existe. ‘Essa situação é complicada porque pode haver uma responsabilização basicamente dos coveiros. Como levar adiante esse caso a não ser pelas fotos do jornal? Será a palavra dos coveiros contra a dos jornalistas e ambos cometeram o crime.’


Discussão continua


Quem se dedica ao chamado ‘jornalismo investigativo’, enfrenta situações complexas que podem render horas e horas de discussões sobre ética e legislação profissional. Os repórteres Aline Custódio e Diego Figueira passaram por várias situações complicadas durante a realização desse trabalho. Uma delas foi quando o coveiro Sandro disse que ‘o problema é se vem algum repórter. Se me pegarem, eu vou ter que catar latinha na rua para sobreviver’. Os dois engoliram em seco, mas foram em frente. ‘Quando chegaram na redação, nós conversamos sobre a situação do funcionário do cemitério, mas decidimos que o mais importante era o interesse público. Nós trabalhamos para o Diário Gaúcho, um jornal popular que tem 1,1 milhão de leitores por dia, 49% deles vive com uma renda familiar de até R$ 1 mil por mês e muitos podem não ter condições de pagar por um funeral dos seus familiares’, diz Magalhães.


Os editores do Diário Gaúcho informaram o Ministério Público estadual no dia em que fariam a matéria, o que ‘é uma orientação do departamento jurídico da RBS (Rede Brasil Sul)’. Para Ana Cláudia Nascimento, haveria a possibilidade de desenvolver a reportagem se o jornal tivesse repassado à polícia o material coletado, e não publicado as informações obtidas com identidade falsa. ‘Muitas instituições dão exclusividade aos veículos que levam denúncias até eles. O jornal poderia ter deixado a investigação para o órgão competente e conseguido o furo jornalístico sem comprometer os repórteres.’


E a discussão continua.

******

Estudante de Jornalismo da PUCRS