Quando tudo parece chato e entediante, quando parece que tudo será falseado e aceito numa democracia fingida, quando parece que as máscaras jamais cairão, quando um sociólogo age estranhamente, quando um operário se torna presidente a passa a agir de forma mais estranha ainda, eis que algo aparece para provocar a centelha, para virar a mesa.
No dia 9 de dezembro o guitarrista Dimebag Darrel morreu assassinado por um maluco chamado Nathan Gale, de 25 anos, que disparou cinco tiros contra o músico e foi morto por um policial. Além de Darrel, mais duas pessoas que assistiam ao show e um segurança foram mortos. Segundo testemunhas, antes dos disparos Gale teria dito: ‘Você acabou com o Pantera. Você arruinou a minha vida. E quanto a Phil Anselmo? Ele precisa de dinheiro para comprar heroína’.
Para esclarecer, Phil Anselmo é o ex-vocalista do grupo Pantera, que encerrou suas atividades em 2001 e do qual Dimebag Darrel e seu irmão Vinnie Barrel faziam parte. A banda tocava um estilo rápido e pesado de rock, o trash metal.
Obtive as informações sobre o incidente num site de notícias sobre rock and roll chamado Wiplash (www.whiplash.net). Hoje, 11 de dezembro, novamente acessei o endereço e um link tratava da cobertura do caso feita pelo Jornal Nacional, da Globo. O site afirma que William Waack, correspondente da emissora em Nova York, apontou o músico como usuário de drogas e pregador de ódio e violência, além de deixar nas entrelinhas que fatos como este ocorrem freqüentemente em shows de rock.
Lucros com Rita Lee
Após a matéria, Arnaldo Jabor leu o seguinte texto, cujo título é ‘Não é mais o mesmo’:
‘O rock começou como canto à alegria e à liberdade, música de esperança numa era de utopias e flores. Aos poucos, a ilusão foi passando. Em 68, a esperança jovem foi sendo detida pela reação da caretice mundial. Os ídolos começaram a morrer: Janis Joplin, Jimmy Hendrix sumiram juntos. Na década de 70, o que era novo e belo se transforma nos embalos de sábado à noite e começa o tempo da brilhantina. Junto com a caretice dos BeeGees, o que era liberdade cai na violência. Em Altamont, no show dos Stones, a morte aparece. Charles Manson é o hippie assassino e o heavy metal e o punk vão glorificar o barulho e o ódio. Com a pressão do mercado mais sólida e invencível, a falsa violência comercial, sem meta, nem ideologia, fica mais louca e ridícula. Os shows de rock viram missas negras que lembram comícios fascistas. É musica péssima, sem rumo e sem ideal. A revolta se dissolve e só fica o ódio e o ritual vazio. Hoje, chegamos a isso, a essas mortes gratuitas. A cultura e a arte foram embora e só ficou a porrada.’
Procurei o texto de Jabor na Globo, para verificar se era idêntico. A reprodução foi exata (http://jg.globo.com/JGlobo/0,19125,VBC0-2754-70139,00.htmltexto).
Não é surpresa que um jornal atue de forma conservadora, especialmente na Globo, que dispensa comentários sobre imparcialidade. O problema é quando uma reportagem é prejudicada pela ignorância. Seria incoerente comentar a atuação de William Waack, já que não assisti ao programa e, portanto, basearia minha opinião em outra opinião.
Mas, o que Arnaldo Jabor apresentou é fato, portanto, posso comentar. É interessante verificar como Jabor parece acreditar que o rock encontrou seu declínio em 1970. Pois o estilo é lucrativo para o jornalista, visto que a roqueira Rita Lee recentemente gravou Amor e sexo, cujos autores são a própria cantora, seu marido, Roberto de Carvalho, e Arnaldo Jabor! Aliás, a música fez tanto sucesso que Jabor resolveu lançar um livro com suas ‘bombásticas opiniões’, sob o título ‘Amor é prosa, sexo é poesia’.
Lá não se vende Coca-Cola
Esqueçamos esta incoerência e analisemos o que Arnaldo Jabor considera falta de ideologia após 1970.
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Em 1985 aconteceu o Live Aid, em que diversos grupos de rock, como Black Sabbath e U2, se apresentaram em Londres e na Filadélfia e o valor arrecadado com a venda de ingressos foi revertido a vítimas da fome na Etiópia;**
Em abril de 1992, vários grupos, como Metallica, Guns and Roses e Extreme, se reuniram para uma apresentação em homenagem a Freddy Mercury, ex-vocalista do grupo Queen, que morreu de Aids, e os valores arrecadados foram revertidos a uma instituição que visa descobrir a cura para a doença;**
O grupo norte-americano Rage Against The Machine, que surgiu em 1992 e lançou seu último trabalho em 2001, sempre trouxe na contracapa de seus CDs o endereço de diversas entidades que lutam contra o racismo e a intolerância no mundo, além de liderar campanha pela libertação de Mumia Abu-Jamal, jornalista americano integrante do grupo Panteras Negras. Ele está no corredor da morte desde 1982, acusado de matar o policial Daniel Faulkner, que batia em seu irmão, apesar de quatro testemunhas oculares afirmarem que uma terceira pessoa atirou em Faulkner;**
Em 1991, o grupo de rock L7, formado apenas por mulheres, criou a Rock For Choice, entidade que luta pelos direitos das mulheres, entre os quais, o direito ao aborto legal.Além disso, a indústria fonográfica, que alega constantes prejuízos com a pirataria, vê o crescimento de selos independentes graças à organização de grupos que preferem montar sua própria gravadora ou lançar seus CDs em selos menores do que fazer parte de grupos como a Som Livre, gravadora da Globo. E, já que citei um exemplo brasileiro, lembro da casa Hangar 110, que desde 1998 promove shows nacionais e internacionais de grupos de rock que estão fora do mainstream. Lá não se vende Coca-Cola, tem sanduíche para vegetarianos, e a casa apóia a adoção de animais do Centro de Zoonoses de São Paulo. E em 2004 o Brasil recebeu o festival feminista Lady Fest, responsável por promover workshops, oficinas, palestras, vídeos, exposições de fotografias, desenhos e pinturas, além de apresentações de grupos femininos de rock and roll.
Mediante patrocínio
Provavelmente Jabor não conhece nenhum destes grupos ou eventos que citei, afinal, eles não são assunto nas rodas do Leblon e de Ipanema, onde não se escuta esta música de péssimo gosto, como ele definiu, mas sim bossa nova, este subjazz brasileiro, e Maria Rita, a cópia da mamãe, Elis. Isso, sim, é exemplo de música de qualidade, assim como Big Brother, Xuxa, Malhação e afins, apresentados pela emissora que financia os hi-fis em que o jornalista beberica em frente à Praia de Copacabana.
Vovô já dizia que não se deve atirar pedras quando se tem janelas de vidro. Talvez Jabor considere que estas manifestações sejam ridículas, porque contam com patrocínio de grandes indústrias. O grupo Rage Against The Machine, por exemplo, era contratado da gravadora Epic, uma das maiores do mundo, mas não dá no mesmo criticar a política de Bush no Jornal Nacional da Globo, a emissora acusada recentemente por Ferréz, autor do livro Capão Pecado, de fazer propaganda de uma entidade que o programa Criança Esperança teria auxiliado, sem que isso tenha realmente acontecido?
Não é estranho cobrar postura ideológica quando você é pago por uma emissora na qual um dos programas, o Fantástico, só apresenta matérias internacionais quando viaja a convite, ou seja, mediante patrocínio de empresas, países ou organizações que se desejem ver retratadas? Esta informação eu obtive ao entrevistar Álvaro Pereira Júnior, editor-chefe do programa. Para o padrão Globo de independência, que impede artistas de serem entrevistados em outras emissoras, Jabor é um exemplo de ironia… afinal, o supra-sumo da liberdade é o grupo Charlie Brown Jr. cantar no Faustão músicas ‘contra o sistema’…
Você também pode
Arnaldo Jabor culpa a música por um ato de insanidade. Se a música é capaz de influenciar, suponho que os meios de comunicação também. Logo, após a descoberta da farsa que foi o debate patrocinado pela Globo entre Lula e Collor, referente à eleição de 1989, deveríamos ter linchado o senhor Roberto Marinho? Se a música é capaz de influenciar desta forma, não deveríamos todos estar amando uns aos outros? Afinal, as emissoras de rádio não estão infestadas de grupos que cantam canções românticas (?)? O Whiplash acerta em cheio ao lembrar do assassinato de John Lennon, autor da canção pacifista Imagine, atingido pelos tiros disparados por Mark Chapman, em dezembro de 1980.
O ex-cineasta, além de desfilar o preconceito rasteiro, digno de um Paulo Francis – aliás, com quem deve ter aprendido muito, afinal, trabalharam juntos no programa Manhattan Connection, onde tratavam da cultura feita para minorias, como peças apresentadas em Londres e artes plásticas expostas em Veneza –, demonstrou total desconhecimento sobre o assunto ao qual se referia. Jabor esqueceu de avaliar a forma como o mundo lida com as armas e, como diretor de cinema (aposentado?), poderia lembrar do caso retratado por Michael Moore no filme Tiros em Columbine, quando dois estudantes mataram 14 colegas de escola e um professor, também nos EUA, mais especificamente no Colorado.
O site publicou o seguinte trecho, que afirmou ser de um funcionário da emissora, em resposta a uma das mensagens enviadas ao Jornal Nacional:
‘Antes de mais nada devo confessar que não acompanhei a cobertura, assim não tenho condições para comentar. Agora, uma coisa é a matéria jornalística, outra é a opinião livre do Jabor. E, mesmo nesse caso, aposto que se ele pisou na bola foi por absoluta falta de conhecimento. Há algum tempo eu tive que dar umas aulas por aqui para explicar que hip-hop não era apologia do tráfico. Vou comentar com a moçada, mas esse episódio serve para mostrar que as pessoas aqui agem e eventualmente erram com independência, ou preconceito pessoal, uma vez que ninguém pode imaginar que existe uma recomendação editorial contra heavy-metal… Grato pelo toque. Abraço.’
Vale lembrar que, independentemente de o texto reproduzir uma opinião pessoal, a responsabilidade é da emissora para a qual o jornalista trabalha. Desta forma, se em algum momento você, estudante de Jornalismo, imaginou desistir da faculdade por acreditar numa suposta falta de aptidão, vá em frente. Se alguém pode falar sobre algo em relação ao qual é ignorante no programa de maior audiência no Brasil, você também pode. Não me aborreço apenas como fã do artista, mas também como estudante de Jornalismo, que assiste a tamanha irresponsabilidade e desprezo pelo telespectador.
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Estudante de Jornalismo, São Bernardo do Campo, SP