Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sobre a ‘arte’ de escolher notas

O Observatório, muito corretamente, chama a si o papel de crítico da imprensa em geral, o que nos permite uma reflexão sobre o comportamento ideológico dos veiculadores de informação. Assim, venho, aqui, trazer um depoimento sobre um recente acontecimento, o qual me causou profundo dissabor.

Eis os fatos:

Em 26 de novembro, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro apresentou o programa Palco Iluminado, por mim produzido e cuja apresentação foi feita por mim e por Cristiano Menezes, o dinâmico diretor da emissora, o qual, consciente da importância de uma emissora pública, democraticamente tem dado oportunidade a produtores sem o agasalho da mídia.

O programa tem por finalidade homenagear, ainda em vida, personalidades marcantes da história da nossa música popular e teve inspiração nos maravilhosos versos de Guilherme de Brito em Quando eu me chamar saudade: ‘Se alguém quiser fazer por mim/ que faça agora.’ .

Como não poderia deixar de ser, o padrinho e primeiro homenageado foi Guilherme de Brito, o que deu ao programa de estréia uma dimensão maior, pois, além da presença de Guilherme, também se apresentaram amigos seus, como Monarco, Xangô da Mangueira, Tito Madi, Jorge Goulart, o jovem conjunto Galocantô, de grande aceitação na Lapa, e a notável cantora Tânia Malheiros .

Diante da reconhecida importância dos participantes do programa, o que o torna um fato social relevante para o público admirador de nossa boa música, busquei o apoio de alguns órgãos da imprensa para divulgar o evento.

Não tive notícia de resposta por parte de nenhum deles.

Silêncio eloqüente

Dentre os muitos jornalistas a quem procurei, um deles me chamou especial atenção. Trata-se de um dos mais conhecidos e respeitados colunistas do provavelmente jornal de maior circulação do país, sendo que, no Rio de Janeiro, é, sem dúvida, o de maior prestígio e habitualmente divulga fatos ligados à música popular e às artes em geral.

Por isso, na expectativa do acolhimento de meu pedido de divulgação, enviei-lhe um e-mail, o qual reproduzo abaixo, apenas retirando o nome do destinatário:

Caro …,

‘Você pode divulgar a homenagem abaixo?

Dia 26 de novembro de 2004, às 16h., no Auditório Radamés Gnatalli, Rádio Nacional Rio de Janeiro, AM 1130, Praça Mauá, 7/21º andar, com transmissão ao vivo, será lançado o programa Palco Iluminado , cuja idéia se inspirou nos versos de Quando eu me chamar sSaudade, de Guilherme de Brito:

‘Se alguém quiser fazer por mim/ Que faça agora / Me dê flores em vida/ O carinho, a mão amiga’

O programa se destina a homenagear, em vida, figuras históricas de nossa música popular.

O padrinho e primeiro homenageado é, claro, Guilherme de Brito, que receberá, junto com seu filho Juarez de Brito, os amigos Monarco, Jorge Goulart, Tito Madi, Xangô da Mangueira, Tânia Malheiros, Fátima Portela, Galocantô e outros grandes nomes.

Produção: Paulo Bártholo

Na expectativa de sua atenção, envio abraços fraternos.

Paulo Bártholo’

E, como surpreendentemente nenhuma linha foi citada, enviei-lhe um novo e-mail, no qual expressava meu desapontamento, uma vez que a coluna sempre manifestou preocupação com nossa música, tal qual expus:

‘Caro …

Na condição de leitor diário de sua brilhante coluna e já tendo mostrado minha atenção, quando, discretamente, alertei, em duas oportunidades, para leves deslizes em relação à língua culta, tão bem respeitada e defendida pela coluna, venho louvar o cuidado exibido pelo colunista, no que diz respeito à divulgação da cultura musical e às artes brasileiras, em geral.

Em 23 de novembro último:

‘O galã Erik Marmo e seus amigos causaram rebuliço no Morro da Urca, no Rio, sábado.

Na fila do bondinho, uma moça chamou o ator de feio. Xingamento vai, xingamento vem, um dos amigos do ator arriou a calça e mostrou o bumbum.’

No mesmo dia, ao lado de uma bela foto, o texto:

‘Milton Nascimento com o afilhado Caio e a menina Betina na platéia do musical Os Saltimbancos, com Maria Lúcia Priolli, no Cittá América.’

Em 25 de novembro, mais uma vez, a coluna abre espaço para a música popular brasileira: ‘O cantor Marcelo Pires Vieira, o Belo, de 30 anos, continuará vendo o sol nascer quadrado. O ministro Félix Fischer, do STJ, negou ontem o pedido de hábeas-corpus (sic) do pagodeiro.’

No dia 26 último, a coluna, ao lado de outra bela foto, divulgou importante evento de nossa cultura: ‘Tati Quebra-Barraco, a funkeira, dá um show, superempolgada, na pista de dança , ao lado do irmão Márcio Santos, na festa da Cavalera numa boate de Copacabana.’

No dia de hoje, junto a mais uma bela foto, a manchete: ‘Vermelho e branco’, acompanhada do esclarecedor texto: ‘Olha a Carol Castro aí, geeeeeeennnte! A linda atriz foi convidada para ser a madrinha da bateria do Salgueiro.’

Como você pode ver, caro …, este leitor é diário acompanhante da boa informação que sua coluna produz e, assim, só me fica uma interrogação: por que o poeta, compositor, cantor, escultor, pintor Guilherme de Brito não foi merecedor da mesma atenção que Tati Quebra-Barraco, Belo, o bumbum do incógnito amigo de Erik Marmo, o lindo afilhado de Milton Nascimento, a menina Betina, a bela Carol Castro e tantos outros sempre bem acolhidos em seu espaço de informação e divulgação de nossa cultura?

Afinal, o programa que, graças a Deus, foi um sucesso, serviu de instrumento da vida para fazer justiça a Guilherme, o qual, quando ainda desconhecido, no início de sua carreira, ia à Rádio Nacional à cata de algum cantor que se interessasse por suas músicas e era retirado de lá pelos seguranças de então e, em 26 de novembro, recebeu uma belíssima homenagem na própria Rádio Nacional, apresentada por este produtor, juntamente com o excelente diretor da Rádio, Cristiano Menezes.

Fica o lamento por não termos conseguido que você também compartilhasse a emoção do auditório (o programa foi transmitido ao vivo, com o palco enfeitado por pétalas de rosas e flores, além de outras pétalas serem jogadas sobre a cabeça de Guilherme, dando a ele as flores em vida de que fala em seus versos), uma vez que percebemos sua sensível reação aos fatos relacionados aos demais personagens citados em sua coluna.

Fica aqui, em nome de Guilherme de Brito e sua família, nosso sentimento por não ter sido possível estender a você nossa emoção.

Afinal, Guilherme tem em sua biografia um dos dez mais belos versos da língua portuguesa ‘Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor’, os quais Manuel Bandeira confessou que gostaria de ter escrito, além de parceiros como Nélson Cavaquinho, Monarco, Tito Madi, Evaldo Gouveia e até o poeta Carlos Drummond de Andrade, sem diminuir os méritos dos personagens e do bumbum citados.

Na expectativa de sua atenção, enviamos abraços fraternos .

Paulo Bártholo.

E a resposta, mais uma vez, foi o silêncio eloqüente…

Guilherme ou bumbum?

Por essas razões, fica aqui um questionamento sobre o papel da imprensa, a quem ela serve, de que se serve, como serve, para que serve, pois o exemplo em nada dignifica o papel da instituição, considerada por muitos o quarto poder.

É lamentável a capacidade de imbecilização de que se valem certo órgãos de nossa imprensa – haja vista a televisão aberta de um modo geral – e o poder de ignorar atividades que reconhecem a importância do papel histórico de personalidades de nossa cultura.

Afinal, amigos, o que deve merecer mais respeito: Guilherme de Brito com sua história em nossa cultura ou o bumbum (certamente sem atributos de plasticidade – e ainda que os tivesse…) de um jovem identificado apenas como amigo de um ator iniciante e outras tolices mais?

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Radialista, Rio de janeiro