Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre jornalismo manipulativo

O Globo do último domingo (18/4) se superou em matéria de pensamento único e indução dos seus leitores a concluir que a América Latina, particularmente a Venezuela, Argentina, Bolívia e Equador, correndo perigo também o Brasil, está decretando o fim da liberdade de imprensa. Mais uma vez os editores misturam alhos com bugalhos, ou seja, escondem o conceito de liberdade de empresa com o de imprensa.

A última edição da revista Veja também segue o mesmo caminho, desta feita em termos de política interna com a foto de capa do candidato a presidente José Serra. E a publicação da Editora Abril decretou que no pós-Lula vem Serra, que se preparou para ocupar a Presidência da República. A matéria, ao estilo panfletário de direita que caracteriza o esquema Civita, não esconde em que campo ideológico está a publicação.

Além de dedicar três páginas da ‘Revista de TV’, com uma foto de primeira página expondo o presidente Hugo Chávez ao ridículo, O Globo ainda por cima usa também na chamada um bordão do outro Chávez, o humorista mexicano, assinalando que ‘Foi sem querer querendo’.

As mentiras sobre a RCTV

A matéria, desenvolvida do início ao fim para demonstrar ‘como os desmandos de Hugo Chávez mudaram o dia-a-dia de quem assiste e produz televisão’, beira o ridículo e não esconde a ojeriza nutrida contra o presidente constitucional venezuelano. A repórter deslocada para Caracas, em meio a mentiras, meias verdades e raciocínio induzido, chega a ponto de afirmar que ‘o ídolo pop’ Chávez, ‘em seu tempo livre também responde como presidente de uma nação sul-americana’.

Seguindo o tom de ridicularizar Chávez, a jornalista obrigada a acompanhar a militância antichavista do grupo midiático Organizações Globo, se vale de análises da ‘estudiosa’ de TV na Venezuela Carolina Acosta-Alzuru. O Globo não esconde o fato, por considerar normalíssimo, que a ‘estudiosa’ hoje mora nos Estados Unidos e dá aulas na Universidade da Geórgia. A repórter não explica que Acosta-Alzuru está engajada nas hostes da oposição ao presidente venezuelano.

A repórter Mariana Timóteo da Costa se vale também de mentiras ao estilo Veja, do tipo que a RCTV foi fechada pelo governo Chávez e assim sucessivamente, quando o certo seria dizer, e até discutir o fato, que a emissora que apoiou a tentativa de golpe de abril de 2002 não foi propriamente fechada, mas sim, não teve renovada a concessão para funcionar como canal aberto. Passou a emitir seu sinal como canal a cabo e há meses foi suspensa até cumprir a exigência constitucional de respeitar a legislação como canal estrangeiro. Depois disso, a RCTV a cabo voltou ao ar, o que foi pouco noticiado por aqui.

‘Emissoras’ ou ‘organizações opositoras’?

Como se não bastasse a manipulação informativa da ‘Revista da TV’ – aliás, um fato raro neste tipo de publicação se ocupar de televisões de outros países com tamanho destaque –, na mesma edição de domingo, O Globo, na página 12, apresenta uma entrevista de página inteira com o jornalista Carl Bernstein com o título ‘Punição para maus jornalistas vem dos leitores’.

A correspondente em Nova York Marília Martins pergunta a Bernstein como ele analisa ‘as tentativas recentes de controlar a mídia na América Latina, especialmente na Venezuela e Bolívia’. Ou seja, a jornalista, seguindo o ideário de O Globo, já de antemão induz os leitores a aceitar o fato consumado de que Chávez e Evo Morales restringem a liberdade de imprensa.

Bernstein, possivelmente percebendo a intenção da jornalista brasileira, responde de forma genérica, não embarcando integralmente na indução e admitindo até que ‘é compreensível que governos sejam preocupados com o poder da mídia, em parte por causa da irresponsabilidade de elementos da mídia e da imprensa’.

Em outra pergunta, visivelmente com o objetivo de colocar a ‘única verdade’, ou seja, a de que governos como da Venezuela e também do Equador criam restrições à liberdade de imprensa e até prendendo quem faz oposição nesses espaços, Bernstein lembra que ‘o problema é saber se as emissoras de TV são de fato jornalísticas ou são formas de mascarar organizações opositoras’.

A ‘verdade’ do patronato conservador

A repórter também não poupou a presidente Cristina Kirchner, da Argentina [na semana passada, uma multidão de argentinos de várias faixas etárias, inclusive estudantes de Comunicação, protagonizou uma passeata pelo centro de Buenos Aires em defesa da Lei dos Meios (de comunicação), criticada com veemência por publicações como o Clarín e outro jornais latino-americanos como O Globo, O Estado de S. Paulo, a Folha de S.Paulo, entre outros], ao afirmar numa das perguntas que ela está pressionando organizações jornalísticas, como acontece com o Clarín que, segundo Marília Martins, ‘vem sendo objeto de devassas fiscais pelo governo’. De saída, o jornalista estadunidense – que protagonizou um importante acontecimento (Watergate) na década de 70 nos Estados Unidos, que culminou com a renúncia do presidente Richard Nixon – avisou: ‘Outra vez, devo dizer que não estou a par da situação da Argentina para dar uma opinião.’ E em seguida fala de novo genericamente e remete a outros fatos, como o caso Watergate, em que o seu jornal, o Washington Post, foi pressionado para impedir publicações de matérias incriminando Nixon, mas que acabou não surtindo efeito, porque o jornal resistiu.

Marília Martins coloca também a questão do Conselho Nacional de Jornalismo, partindo mais uma vez de premissas falsas, que levam Bernstein, que possivelmente não está a par da matéria, e os leitores a aceitar a única verdade fartamente divulgada pelo patronato midiático conservador, segundo a qual o Conselho ‘poderia estabelecer punições como cassar o direito de exercer a profissão’.

Porta-vozes de partidos políticos

Carl Bernstein estará chegando ao Brasil em maio para participar de um seminário sobre liberdade de expressão, organizado entre outras entidades pela Escola de Magistratura do Rio (Emerj), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e -Associação Nacional de Jornais (ANJ). As últimas duas têm insistido na tese que confunde liberdade de imprensa com liberdade de empresa.

Se o consagrado jornalista estadunidense não se precaver, poderá ser utilizado como defensor de conceitos emitidos pelo patronato conservador brasileiro, que não é necessariamente a sua posição, como, dentro do possível, dá a entender na entrevista manipulada de O Globo.

Por estas e muitas outras, que para serem mencionadas não caberiam neste espaço, a cada dia está ficando mais claro, se é que há ainda dúvidas a esse respeito, que meios de comunicação como O Globo e a revista Veja estão se tornando porta-vozes de partidos políticos conservadores que temem as verdadeiras transformações, mas não têm coragem de assumir esse posicionamento.

Também por estas e outras, o patronato midiático conservador está intensificando a organização de seminários destinados a debater a liberdade de imprensa e de expressão, quando o certo seria apresentarem-se como defensores incondicionais da liberdade de empresa.

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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ