Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sorria, você está sendo filmado

Foi a impressão que tive quando li a entrevista das páginas amarelas, na
revista Veja (14/10/2009), intitulada ‘Caixa-Preta na Cirurgia’,
com o cirurgião paulista dr. Ben-Hur Ferraz Neto.


Apesar de minha longa carreira profissional como pediatra e atualmente como
psicoterapeuta, o estresse diuturno da/na atividade cirúrgica é de estremecer. O
entrevistado trabalha em um dos principais hospitais brasileiros. Concordo
quando afirma que, por mais que a tecnologia evolua, jamais será capaz de
controlar todas as inúmeras variáveis envolvidas num ato cirúrgico.


Na verdade, inexiste ação humana capaz de garantir em 100% o êxito ou a
segurança, e muito menos máquinas competentes para reproduzir a vida do paciente
em tempo real, com a pulsação, o sangue correndo pelas veias do paciente e o
movimento dos órgãos, isso sem falar da equipe cirúrgica.


Também estou de acordo com o entrevistado quanto à necessidade de o
médico-cirurgião possuir uma personalidade resoluta, o que lhe permita tomar
decisões instantâneas e criativas para salvar a vida do paciente, além dos
atributos de conhecimento, treinamento etc. O que não abarquei foi a ênfase dada
pelo entrevistado quanto ao valor da existência de uma caixa preta na sala de
cirurgia!


Na aviação, tudo bem. Em geral, vários fatores estão envolvidos na queda de
um avião, como erro humano, equipamento, condições atmosféricas etc. e os
registros servem à profilaxia da repetição de acidente semelhantes, apesar de
não ressuscitar os mortos.


Verdades transitórias


Já imaginou, leitor amigo, se o piloto colocasse em votação entre os
comissários de bordo e os passageiros, se deve ou não realizar um pouso de
emergência? Assim como o comandante de uma aeronave, um cirurgião trabalha com
auxiliares de diferentes graus de conhecimento. Raros são os atos cirúrgicos em
que não se necessite de ajudantes, todos sujeitos às mesmas condições de
humanos. Ou será que o cirurgião, por ser cirurgião, não teria a mesma condição
dos demais mortais? O cirurgião seria algum deus?


Como psicoterapeuta, tenho a impressão de que todos nós temos lá o nosso
momento emocional capaz de influenciar a conduta profissional. Por outro lado,
já imaginaram a sensação de um cirurgião — ao levantar os olhos do campo
operatório e deparar com uma câmera ou outra geringonça com o letreiro: ‘Sorria,
você esta sendo filmado’? Isso não tornaria o trabalho ainda mais estressante?
Como reagiria um cirurgião sabendo-se vigiado por um Big Brother?


Em lugar da caixa preta, não faríamos melhor se tratássemos o ‘narcisismo
doentio que pode acometer um cirurgião ou qualquer outra pessoa’? Quando um
familiar ou amigo meu tem de se submeter a uma cirurgia, prefiro não entrar na
sala para que a equipe cirúrgica fique mais à vontade.


Esta entrevista terminou por lembrar-me a letra de um antigo samba do Billy
Blanco(1924):




‘(…) Pra que tanta pose doutor? Pra que este orgulho…? O infarto lhe
pega, doutor, e acaba essa banca.’


Graças a Deus, quem me socorreu, na hora do infarto, foi a ponte de safena.
Gostaria de lembrar, para concluir, a todos (médicos e leigos): a medicina é a
ciência das verdades transitórias…!

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Médico e psicoterapeuta