Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Televisão, lazer e redenção

Alguns formatos de programas de TV substituíram as confissões dos domingos de outrora. Âncoras, apresentadores de alta popularidade e autoproclamados redentores tomaram o lugar dos padres na sacristia. Agora, o perdão e a absolvição se dão ao vivo e em cores para todo o Brasil.

O vídeo onde o pastor-presidente da igreja Assembleia de Deus pede a senha do cartão cedido pelo fiel mostra de forma cabal como é fácil a compra orações em formatos diversos. As especiais são reservadas para doadores especialmente generosos. Esse pastor e deputado federal (PSC-SP), conhecido por defender postura homofóbica e declarar que os negros são “amaldiçoados”, tornou-se presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, fruto igualmente de seu poder midiático e da força dos lobistas da classe política, os mesmos que possibilitaram a volta de Renan Calheiros ao comando do Senado.

Nesse contexto de catarses pessoais, a TV funciona como um instrumento acima do bem e do mal, seja pelo caráter global de seus âncoras, seja sobre o manto da religião e da salvação, mesmo que a cerimônia seja transformada em um mercado de trocas de mercadorias, um mercado do quem da mais.

Os melhores do ano

Em recente cerimônia no Domingão do Faustão, artistas globais, comportadamente enfileirados, eram chamados ao palco para se pronunciarem sobre a nomeação. Durante duas horas, o apresentador Fausto Silva ratificava exaustivamente o caráter especial do prêmio enquanto fazia um comentário de cunho às vezes profissional, às vezes pessoal, num constante atropelo da ética, inviabilizando um distanciamento saudável e necessário entre prêmio e premiado, juntando alhos com bugalhos e bagatelizando alguns excelentes artistas, cercados na chamada “área vip” sobre o palco.

Irritado com a ausência de Marcos Caruso, nomeado como melhor ator coadjuvante pelo seu personagem “Leleco”, em Avenida Brasil, em tom de desagrado, citou os nomes dos chefes de núcleo da Rede Globo, que sem sucesso tentaram a liberação do ator à época atuando num espetáculo de teatro em Recife. Que bom que nem todas as companhias de teatro sucumbem aos gerentes de núcleo. Já o ator José de Abreu foi repetidamente elogiado por ter mudado o horário do espetáculo teatral para comparecer ao ritual dominical.

Na edição de domingo (9/3), Fausto Silva mal continha a excitação em ver “Johnny”, cachorro de Giovanna Ewbank, resistir às provocações dos galãs Francisco Cuoco e Carmo della Vecchia. Tudo em prol da fidelidade à sua dona, que durante o percurso de adrestamento o chamava de “filho”.

Código de ética no Faustão

Ser convidado pela equipe do Domingão do Faustão é adentrar num cobiçado círculo. Isso implica sujeitar-se às piadinhas e gracinhas sem fechar a cara, já que a marca Rede Globo paira sobre a cabeça de todos. Sorrir, galantear, se emocionar e agradecer aos diretores é o roteiro de praxe. Fare una bella figura.

Numa fila de três, com Cauã Raymond e Juliano Cazarré, Murílo Benício foi indagado por Faustão: “Murilo, você é um cara crítico, o que você acha que está faltando no Brasil?” Depois de algum balbuciar sem sentido, Benício ressaltou a importância da educação no país enquanto Raymond e Cazarré, ao lado, atuavam como coadjuvantes. Benício também teve que ouvir tiradas sobre sua vida pessoal: “Olhá só (referindo-se a Benício e Débora Falabella, que Fausto apelidou de “Casal de Hollywood”), vocês estavam em Nova York! Olha que beleza, você tá bem, hein Murilo… Eu já te vi em situações bem outras, meu!”

Benício aproveitou para mais uma vez promover o romance do ano, como um troféu: “Pois é, eu tô feliz!” Ao ganhar o prêmio e reagindo ao comentário sobre a esbelta silhueta do ator, Benício foi direitinho na dialética faustiana: “Já viu como ela (Debora Falabella) é bonita? A gente tem que se cuidar…” – ratificando a dicotomia entre oferta e procura, também nos relacionamentos humanos.

No dicionário midiático de Fausto Silva, o fulano é sempre pai ou mãe de alguém, filho de alguém. Nunca alguém por si só – um sujeito, e não o produto de uma árvore genealógica. O humorista Rodrigo Santanna também não se livrou da sabatina no Domingão. No ápice da popularidade dos papéis em Zorra Total ele teve que presenciar depoimentos de sua mãe e seu pai, já há muito separados. Também o alcoolismo do seu pai se tornou pauta naquela tarde de domingo, para aumentar o pathos em torno de Rodrigo, que frente ao pedido de desculpas do pai, não conteve as lágrimas. A redenção e o final feliz acontecem no Faustão, e pelo Faustão.

A ética em solo alemão

A TV alemã RTL lançou há algumas semanas a série 7 dias de sexo (7 Tage Sex), que acompanha, ao vivo e em cores, a vida sexual – adormecida – de parceiros de longa data. Os casais participantes se comprometem, por contrato, a terem relações sexuais todos os dias, durante 7 dias, e fixar isso em um relatório.

A poderosa RTL justifica a série com a seguinte nota: “De acordo com psicólogos, entre 15% e 20% dos casais alemães levam uma vida sem qualquer atividade sexual. Alguns terapeutas ainda declaram ser essa a maior razão de divórcios no país”.

Cheia das melhores intenções em reunir esses casais ao caminho do prazer, a RTL
lança o espectador ao mero voyeurismo. Na última semana, a séria produziu um escândalo quando vazou a informação de que um dos casais, Cathleen (31) e Andreas (43), são filhos do mesmo pai e tem em relacionamento íntimo há 9 anos. Somente depois do final das gravações, por meio do telefonema de um familiar na quarta-feira (6/3), a emissora soube do parentesco dos dois candidatos, que numa primeira reação chegaram a negar, justificando que só há pouco tempo teriam tomado conhecimento da existência do laço biológico. A consequência foi a RTL abdicar de exibir as cenas já gravadas de Cathleen e Andreas.

Como de praxe, colocando lenha na fogueira, o tabloide Bild manchetou: “Escândalo de incesto na série ‘7 dias de sexo’. Cathleen e Andreas são filhos do mesmo pai!” (ver aqui).

Na segunda-feira (11/3), no horário nobre de 20h15, estreou mais uma série de caráter voyeurista na RTL: Das Jenke Experiment (O experimento Jenke). Um espectador se propôs a ser acompanhado pelas câmeras durante quatro semanas, com consumo diário de bebidas alcoólicas. Prontamente o ministro da Saúde Daniel Bahr criticou o formato do programa, como publica o jornal Augsburger Allgemeine (ver aqui). Já RTL justifica a exibição da série como “manobra de dissuasão”.

Em TVs de cá e de lá, regem os tentáculos para não somente atrair o máximo de espectadores, mas para consumir os formatos e incluí-los no seu estilo de vida. Ao contrário do Brasil, a Alemanha tem instrumentos de controle, mesmo em formato tabloide, mas que resultam, pelo menos, no abdicar da exibição das imagens. Já o poder do sistema Globo (mesmo com as últimas críticas sobre a falta de um conteúdo robusto no Jornal Nacional) ainda segue inabalado.

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Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988