Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Todo mundo fala, ninguém sabe nada

É um festival midiático para aparecer. Um caso como este do Airbus se transforma num espetáculo de conjecturas e informações irresponsáveis. Não é de hoje. Em Caixa-Preta, o aviador Ivan Sant´Anna reconstitui três desastres que entraram para a história da aviação brasileira. Teria sido uma obra perfeita pelo aspecto jornalístico, mas foi elaborado por este escritor. Teve um exaustivo trabalho pesquisando o assunto. Em especial o desastre do avião que ficou perdido em algum ponto entre Marabá e Belém, num voo cego comandado por Cezar Augusto Garcez (1989). Partindo de um amplo trabalho de pesquisa e uma série de entrevistas, faxes, e-mails, telefonemas, cartas, documentos e laudos. Por ter, como neste, levado muito tempo para entender o que ocorrera e localizar o ponto do desastre, deu tempo para muitas especulações e alarmes falsos.

O que era para ser uma inesquecível tarde de domingo, no dia 17 de dezembro de 1961, com a estréia do Gran Circus norte-americano em Niterói, tornou-se o dia mais triste da história da cidade. Na época, minha mãe contava, das suas leituras do jornal, que uma mulher aparecera desesperada querendo saber do seu filho, em tal desespero que comoveu os bombeiros que atendiam ao ocorrido e saíram a procurar e a lhe dar apoio. Soube-se depois que a pessoa era solteira e nunca tivera filho algum. Coisas da mente.

Um voo rasante e um estrondo

Entre as tantas pessoas que se comoveram com a tragédia de Niterói havia José Datrino, um empresário do setor de transportes de cargas no Rio. Interpretando a queima do circo como uma metáfora do incêndio do mundo, sentiu-se chamado para abandonar o mundo material e se dedicar apenas ao espiritual. Assim, deixou tudo para trás e seguiu para Niterói, passando a viver como o profeta Gentileza. E foi no próprio terreno do incêndio que começou a reconstruir o mundo, transformando o local num belíssimo jardim e levando ao próximo seus ideais de gentileza e paz. Na interpretação psiquiátrica do seu comportamento, podemos dizer que o mesmo surtou. Um exemplo dos efeitos que um desastre destes pode vir a provocar em participantes – e até mesmo em pessoas não relacionadas entre as vítimas.

Voltando para o 3 de setembro de 1989, um domingo, o Boeing 737-200 prefixo PP-VMK da companhia aérea brasileira Varig, voo Varig RG-254, que ia de Marabá para Belém, desaparecera. Um piloto de garimpo, de nome Portela, afirmara ter visto destroços do Boeing numa área de queimadas conhecida como Porto Seguro, na Fazenda Jaú, a 60 quilômetros de São Felix do Xingu, no sul do Pará. Portela avistara indícios de sobreviventes. Quase ao mesmo tempo, o Salvaero de Belém recebera um telex informando que o avião desaparecido fora localizado próximo à cidade de Itacoatiara, no estado do Amazonas.

A redação do jornal O Liberal, de Belém, informara à Aeronáutica que Alberto Caetano, funcionário da Empresa de Telecomunicações do Pará, recebera um telefonema de Adaílton Vieira Bezerra, inspetor da Secretaria de Fazenda do estado do Pará, informando que na noite de domingo vira um avião de grande porte fazer um voo rasante sobre as instalações da Mineração Xingu, no município de São Felix do Xingu. Em seguida, Bezerra ouvira o estrondo do avião se chocando com o solo.

Um crime dantesco para esconder o erro

Ao final da segunda-feira, o pessimismo em Belém era tão grande que na Secretaria de Saúde do estado do Pará, onde o engenheiro Paulo Altieri, provável vítima da queda, era diretor de Meio Ambiente, seus colegas começaram a preparar um salão para o velório. Mas os preparativos foram interrompidos quando uma emissora de rádio noticiou que uma fazendeira, de nome Maria das Graças Junes, município de Xinguara, ao sul de Marabá, informara através de rádio que os passageiros do voo 254 haviam chegado à sua fazenda. E que, embora houvesse vários feridos, ninguém morrera no acidente. Os sobreviventes, segundo ela, estavam viajando de carro para Marabá pela BR-158.

Nenhum destes testemunhos tinha cunho de verdade. Mas o conhecimento do ocorrido levara as pessoas a inventarem fatos não existentes e falsos testemunhos, atrapalhando o verdadeiro resgate e a tentativa de salvar potenciais vítimas, se houvesse. Prejudica o trabalho jornalístico que não consegue tempo para verificar as informações e desvia o trabalho para pistas falsas. O que leva pessoas a terem tal comportamento e fraudarem tal papel? O que podemos ver a dificuldade em acreditar em testemunhos de avistamentos, milagres e narrações sobrenaturais. Não só a mente não é confiável como pode ser apenas uma testemunha fraudulenta.

Em termos de motivações obscuras e comportamentos bizarros temos o exemplo do próprio comandante Cezar Augusto Garcez que, se dando conta do erro, o manteve escondido do co-piloto boa parte do tempo. E depois deste ter descoberto por si, manteve o erro crasso escondido de todos os envolvidos em ajudá-los. Um co-piloto fraco deixou-se dominar pelo comandante tresloucado. Garcez optara no desespero levar para a morte o seu erro voando até a aeronave se espatifar no solo sem combustível, negando-se a retornar e assumir seu erro de navegação. Poderia ter comunicado o erro primário que cometera para ser orientado por outros pilotos de cabeça fria e ser localizado. Visto o medo ter lhe tolhido o bem senso e o bloqueio emocional em achar a solução fácil a sua frente. Um giro de 180 graus e o retorno ao ponto de partida. Marabá. Para azar seu, sobreviveu por acaso, mostrando um suposto ato heróico no pouso no escuro com sobreviventes, um crime dantesco ao ir até o fim para esconder o seu erro, mesmo que matasse todos para ocultá-lo com a própria morte. Apenas o acaso salvou os sobreviventes de um pouso no escuro completo. Não foi perícia alguma pousar sem motor no escuro em uma área desconhecida.

Um clarão forte e intenso

No presente desastre, do avião da Air France que fazia o voo 447 (Rio-Paris), também assistimos a este espetáculo intrigante quando se divulgou que alguns parentes teriam recebido mensagens de celular das vítimas. Coisa que quaisquer pessoas centradas sabem ser impossível de fazer, mesmo que os mesmos tivessem tempo para ligar, em pleno Oceano Atlântico. Outro conseguiu penetrar no ambiente reservado aos parentes isolados no hotel na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro, para dar a notícia do encontro de sobreviventes.

Segundo o advogado Marco Túlio Moreno Marques, filho de uma das vítimas do voo, ‘um homem aos berros’, na sala (de convenções do hotel), disse que uma fragata teria recolhido vários sobreviventes, próximo ao local onde foram encontrados os destroços. Muitas pessoas comemoraram, mas em seguida a informação foi desmentida. Não tinha, na ocasião, sido encontrado nada além de lixo afirmado pelas autoridades como restos do desastre, em uma região completamente distante da rota. Levando a especuladores sugerirem que o mesmo podia estar tentando retornar, como se para isto precisassem fazê-lo com uma curva de centenas de quilômetros.

Tivemos também testemunhos de fogos nos céus, do comandante do voo 974 da Air Comet, que fazia o trajeto Lima-Madrid, na madrugada de segunda-feira. Teria avistado clarão ‘forte e intenso de luz branca que tomou trajetória descendente e vertical’. ‘Estava a sete graus ao norte do Equador e no Meridiano 49 oeste e se desfez em seis segundos.’ O jornalista Roberto Cabrini mostrou, na TV Record, uma testemunha de fogos nos céus de Fernando de Noronha que afirma ter testemunhado, como se a terra não tivesse curvatura e a distância não fosse de centenas de quilômetros. Até mesmo sugestão de que possa ter sido um meteoro a derrubar o voo foi relatado.

Gente fina é outra coisa

Depois de 15 dias à deriva no mar, quatro pescadores foram resgatados e voltaram para casa em Nova Almeida, no Espírito Santo (ver aqui). O barco Urso Branco, que havia saído para uma pesca, estava a 83 km da costa. A embarcação Urso Branco havia saído de Nova Almeida no último dia 25 de maio para uma pesca a 30 km da costa. A previsão era de que eles voltassem três dias depois, mas não apareceram. A Capitania dos Portos foi informada do desaparecimento no dia 1º de junho. Mesmo dia da queda do Airbus. Começaram então as buscas.

No dia 3, foi avistado um barco semelhante ao Urso Branco a 40 km da costa de Aracruz, mas não foi confirmado que era a embarcação desaparecida. Dois dias depois, a Capitania dos Portos encerrou as tentativas de localizar o barco Urso Branco. Tiveram de se safar sozinhos. A velha história deste mundo. Gente fina é outra coisa. Não falta combustível. Principalmente quando a mídia está de olho.

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Direito à informação

Depois de promoverem pedaços de pau a restos de uma queda de avião, os porta-vozes da marinha e da aeronáutica quiseram impor uma política de esconder informações e omitir fatos. Alegaram que iriam passar as informações apenas para familiares e que não informariam coisas sem nenhuma morbidade, como o sexo das vítimas. Ocultariam também o estado dos corpos achados, que não seriam de utilidade pública.

Creio que todos devem concordar que a liberdade de informação está contemplada na nossa Constituição e é um dos pilares da democracia. Não se trata, portanto, de um direito da autoridade de esconder a mesma a seu bel-prazer. É uma função da mídia procurar e divulgar informações que possam vir a ser de interesse do público. Este é que deve filtrar o que deseja saber e o que acha que não lhe interessa. Causa estranheza este comportamento das autoridades. Mas sendo o terceiro acidente em dois anos, descobrimos como as coisas eram tratadas de forma irresponsável. E parece que continuam sendo.

A vida privada de cada um é de interesse particular. Também garantido pela Constituição. Mas o caso não é de modo algum particular. Envolve um desastre aéreo que a todos que podem passar por essa situação deve interessar saber. Só sabe agir e se comportar quem conhece, já vivenciou à distância situações semelhantes. Tanto na hipótese de vir a ser vítima como a de vir a ser um familiar ou amigo de alguém que foi tolhido deste modo. Alguns se salvaram no tsunami porque haviam ouvido falar do recuo do mar e o seu perigoso retorno catastrófico. A maioria nunca tinha ouvido este fato simples. É algo que interessa a todos potencialmente mais do que uma novela. Pois é destes fatos que se avalia a vida real. E por dever de ofício, o jornalista se toca atrás das informações e das notícias para passar ao leitor, ao telespectador, ao ouvinte.

Zero para o ministro da Defesa

Não se pode exigir tratamento privado nestes casos quando se estão usando milhões de reais do povo para algo que se alega não ser público. É direito do povo saber onde estão sendo empregadas as suas forças armadas, os seus recursos públicos. Se estas buscas fossem feitas por conta das famílias das vítimas, poderia se manter as informações no campo privado. Mas estão sendo usados recursos públicos de uma nação que pertence a todos. E nem todos recebem a mesma relevância que o governo tem dado aos últimos desastres aéreos. De outubro de 2007, com a queda do voo 1907, até hoje, morreram mais de cem mil no trânsito, incógnitos e desassistidos. Mais um número astronômico de mortos por homicídios. Fora as filas de hospitais e de falta de cirurgias.

Fica difícil, portanto, alegar que quem paga a conta não tem nada para saber e que cuide da sua vida. Que as informações obtidas não possuam ensinamentos para quem está de fora. Que ao povo não cabe saber e fiscalizar suas autoridades. Sem mencionar o enorme número de aeronautas e envolvidos em assuntos aeronáuticos e marinhos que estão muito envolvidos com estes assuntos que lhes dizem respeito. Vide o movimento de pilotos pela troca da peça defeituosa que a sua troca tem se arrastado no tempo.

Um grande zero para o ministro da Defesa. Se em tempos de paz fez este papelão, imaginemos em tempo de guerra o custo do seu despreparo total. Apenas a censura será eficiente para esconder a vaidade e a fragilidade das ações como agora.

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Médico, Porto Alegre, RS