Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

TV e cachaça universitária

Tinha inicialmente a intenção de poupar eventuais leitores até fins de janeiro. Todavia, ocorrências à beira do término de 2004 me provocaram o presente artigo.

O primeiro fato diz respeito a algo efetivamente surpreendente (ou bizarramente singular) noticiado pela Folha de S.Paulo (terça, 28/12), com a seguinte chamada de primeira página: ‘MG oferecerá curso superior de cachaça’.

Sob o ponto de vista jornalístico, a nota tem todos os ingredientes para atrair o leitor. Abaixo vinha o texto da chamada – ‘Autorizado pelo governo, o curso de tecnologia em produção de aguardente começa em agosto em Salinas’ – remetendo o leitor ao caderno ‘Dinheiro’. Lá estava, como destaque, a matéria assinada por Thiago Guimarães (‘Fabricação de cachaça terá curso superior’).

Não se tratava de nenhuma ‘pegadinha’ para atrair leitores. Tudo era rigorosamente verdadeiro. Eis que, a partir de agosto de 2005, terá início na Escola Agrotécnica Federal, na cidade de Salinas (MG), sob o ‘diligente’ controle do MEC, a primeira turma que, com a carga de 2.760 horas, 31 disciplinas e mínimo de três anos, ao fim obterá o almejado diploma universitário, com a rubrica de ‘Tecnólogo em aguardente’.

Antes de qualquer comentário, cabe registrar mais alguns dados fornecidos pela matéria:

1. ‘O norte de Minas, onde fica Salinas, destaca-se como produtor de cachaça artesanal. Ao todo, há 8.446 alambiques e 498 fábricas de cachaça registradas no Estado’;

2. ‘A fabricação de cachaça já era ensinada na EAF de Salinas em cursos de nível básico e médio. Parte da produção é comercializada no atacado com o nome ‘Sal da Terra’ – em 2004, foram 48 mil litros’.

É óbvia a importância econômica que a produção de aguardente tem para a região. O que nada óbvio deve ser é a pífia ação do MEC. Com os cursos de nível técnico que vinham regularmente sendo ministrados, a atividade já estava assegurada. Pretender alçar à condição de curso universitário é eliminar de vez qualquer sentido minimamente solene que a formação superior poderia ainda conferir. Claro está (e a matéria confirma) que se trata de mais uma ‘gracinha’ tipicamente brasileira (‘…o primeiro curso de nível superior do mundo voltado para a produção de cachaça’).

Tentando, com isenção, avaliar a ‘suprema’ decisão do MEC, fica a sensação de que o país não é levado a sério. Fico a perguntar como, sem faculdade específica, o milenar vinho, champanhe, whisky, vodka, cerveja, entre outras bebidas, ao longo do tempo, consagradas pelo mundo, chegaram a essa condição? Não há como deixar de considerar gaiatice.

O perigo está no precedente. É a porta aberta para, na demagogia do slogan ‘universidade para todos’, multiplicar-se pelo país afora geração de ‘doutores’ cuja titulação não corresponde a efetiva qualificação intelectual, mas bem se presta a dados estatísticos. Talvez aí resida a ‘perversão’ que se oculta por trás da gaiata decisão. Esperemos…

Retrospectiva: a senhora do destino

O segundo fato ficou a cargo da ‘suntuosa’ Rede Globo que, na noite de 30/12/04, levou ao ar mais uma edição anual do já tradicional programa Retrospectiva. Será difícil fixar parâmetro para qual dos dois fatos aqui relatados se deve destinar o ‘prêmio sandice’.

É provável que a Rede Globo se julgue portadora do que ela própria cedeu para título de novela. Sim, quero afirmar que, a julgar pelo critério temático e pela técnica de montagem e edição, a suposta e prometida ‘retrospectiva’ traduz a imagem que a Rede Globo faz de si mesma. Ela se julga a ‘senhora do destino’. Como tal, recorta o tempo e elege o espaço como bem entende. Dane-se o sentido da Hístória e lixe-se o princípio da logicidade narrativa.

Antes que algum leitor ‘globista’ se anime em retrucar, sob a alegação de que linguagem de TV é, por excelência, não-linear, é bom deixar claro que a não-linearidade constitutiva de um processador de linguagem deve levar em conta o princípio de unidade, de coesão. Afinal de contas, trata-se de linguagem. Queiram ou não, toda e qualquer linguagem supõe base pensante. Mais ainda essa se torna exigência se o produto exibido vem com a assinatura de ‘Central Globo de Jornalismo’. Aquele entulho caótico quer passar por ‘produto jornalístico’?

A TV Globo se revelou tão ‘senhora do destino’ que resolveu (será por critério jornalístico?) iniciar o ano findo pelo mês de agosto, abrindo com as Olimpíadas. Que interessante! Chamam isso de ‘dinamicidade’. Creio que a Central de Jornalismo da BBC terá muito o que aprender com as ‘inovações’ da Globo…

Os cérebros enlouquecidos devem, num processo de reeducação, compreender que ‘retrospectiva’ impõe certo grau – mínimo que seja – de linearidade narrativa. Se, por outro, querem fazer o que fazem, então tenham a sensatez de dar título diferente, a exemplo de ‘Painel 2004’, ‘Recortes do Ano’, ‘Revista 2004’. Enfim, inventem o rótulo e criem o ‘ano’ como a Globo vê. Mas que fique assumido.

O que não pode é oferecer o produto enganoso quanto à finalidade e medíocre no tocante ao conteúdo. Só mentes descentradas podem dar destaque a captura de capivara, encalhe de baleia e mero burocrático registro final a mortes como as de Celso Furtado, Leonel Brizola e Yasser Arafat. Isto é desrespeito, além de prepotência própria da incompetência jornalística e da arrogância, filha da incultura e neta da espetacularização das emoções banais.

São estas ‘euforias fabricadas’ que produzem o caldo cultural gerador de previsíveis tragédias, conforme o ocorrido numa discoteca de Buenos Aires na quinta-feira (30/12), deixando o saldo macabro de 175 mortos e 714 feridos. A ingenuidade, por ser acrítica, ignora o horizonte do perigo. Na roda do infortúnio, todos os agentes implicados (a ganância dos proprietários, o descaso das autoridades públicas) se revelam inconseqüentes. Em meio à insensatez, figura a massa de público pagante, cada vez mais seduzida e induzida pela tentação de uma ‘estética’ do fascínio audiovisual.

Não há o que lamentar. Há que se transformarem os paradigmas da cultura. A educação, numa ponta e os meios de comunicação, na outra, devem ser os principais setores empenhados no real projeto de redefinição do imaginário societário.

Por fim, esperemos que o transcurso de 2005 siga rumo menos kafkiano do que fez terminar 2004.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)