Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um jornalismo de salamaleques e rapapés

A exemplo do que acontece com frequência no futebol, o grande barato no jornalismo é que o dom, o talento, teimam em despontar de onde menos se espera, driblando as próprias limitações e injunções – as chamadas normas da casa – que normalmente tolhem a imprensa. Como é o caso da conquista do Prêmio Esso de Jornalismo regional por parte das jornalistas Suzana Fonseca e Tatiana Lopes, de A Tribuna de Santos, pela série de reportagens que permitiram que uma jovem reencontrasse a família 29 anos após ter sido seqüestrada, ainda bebê. Um trabalho investigativo digno de enredo de novela e que acabou com um final feliz para todo mundo.

Como não poderia deixar de ser, a história caiu do céu para um jornal que raramente tem algo a oferecer a seus leitores além da cobertura trivial de sempre, com sua linha burocrática que já virou motivo de chacota na região, como o tal epíteto de jornal para cardíacos cunhado há muitos anos em sua própria redação. Ainda mais em se tratando de um desses casos que todo jornalista sonha em contar, mas que poucos conseguem, por falta de atributos básicos como o velho e bom faro jornalístico. Faro e determinação que levaram as duas jornalistas santistas a encontrar, em apenas duas semanas, as pistas que permitiram a elucidação de um caso que se arrastava há quase trinta anos.

A partir de uma pauta aparentemente despretensiosa e desenvolvendo uma investigação tipicamente policialesca, elas juntarem as peças da trama que acabou ganhando destaque nacional ao ser exibida pela Globo no Fantástico (24/05), três dias após o teste de DNA confirmar que a dona de casa Neusa Dias Franco é, de fato, mãe biológica da jovem raptada ainda bebê, Alessandra Galvão dos Santos. Um grand finale que credenciou a série de reportagens à conquista do prêmio máximo do jornalismo brasileiro, o qual, por sinal, não poderia ter vindo em melhor hora, no sentido de elevar o moral de uma redação que de certa forma é a menos culpada pela gradual decadência de um dos mais tradicionais matutinos regionais do país.

Por um compromisso efetivo

A premiação ocorreu no último dia 5 de novembro, nas luxuosas instalações do Hotel Copacabana Palace, sendo que o material da dupla santista venceu a disputa com reportagens publicadas por O São Gonçalo, do Rio de Janeiro – Doca e Sonia, Codinome Liberdade –, e pelo Jornal de Santa Catarina, de Blumenau – O Maior Desastre Climático do Brasil. Suzana e Tatiana se juntam assim a nomes como Eron Brum, Miriam Guedes de Azevedo, Roberto Sassi, Juarez Bahia e, mais recentemente, Leda Mondin, Lane Valiengo e Manuel Alves Fernandes – este, o único remanescente desse seleto grupo de laureados –, como representantes de uma escola que sempre foi muito respeitada no cenário nacional. Escola que sempre teve na centenária A Tribuna seu grande expoente, daí o inconformismo de muita gente – entre os quais este humilde escriba – com o processo de degradação pelo qual vem – ou vinha – passando.

O vinha fica por conta do benefício da dúvida ensejada pela chegada do novo editor, o respeitado Carlos Conde – por sinal, também ganhador de um prêmio Esso, em sua passagem pelo jornal O Estado de S. Paulo na década de 70 –, que se ainda não teve tempo para mostrar a que veio, pelo menos não tardou em dar um novo dinamismo ao jornal. Se serão mudanças meramente cosméticas e paliativas, ao invés da indispensável quebra dos tabus que de há muito denigrem a imagem do jornal, só o tempo vai dizer.

Tabus perante os quais a própria temática da reportagem premiada com o Esso não deixa de parecer irrelevante, no sentido de que o drama isolado de uma família, por pior que seja, não se compara à série de problemas graves que afetam a vida de milhares de pessoas e para os quais a cobertura superficial e parcimoniosa do jornal de pouco ou quase nada serve. O que equivale a dizer que por mais merecida e elogiável que tenha sido a tal premiação, nem por isso a imagem do jornal – como de resto de todo o grupo A Tribuna, por conta do nefasto monopólio exercido pela familia Santini –, deixará de ser menos negativa. A menos, como já foi dito, que a conquista sirva de inspiração para a implementação de um jornalismo efetivamente comprometido com as causas que interessam à região e à população.

Assuntos, não faltam

Me divirto com a idéia do trabalho insano que um ombudsman teria no jornal dos Santini. Mesmo atendo-se ao básico, considerando-se a inevitabilidade de certas concessões inerentes à imprensa regional, salta aos olhos a falta de disposição e de comprometimento – para não dizer de vocação – para uma abordagem mais corajosa dos problemas locais. Leniência e conivência patentes na falta de questionamento de tudo que possa gerar polêmica e se oponha à mentalidade mercantilista predominante no grupo. Daí o conluio velado mantido com autoridades, políticos, parceiros de negócios e amigos da casa no sentido de preservar privilégios que se traduzem no verdadeiro loteamento da atividade econômica que se verifica na região.

– Loteamento da área portuária, nas mãos da Codesp e de empresas privadas que faturam os tubos sem comparecer com a devida contrapartida à cidade.

– Loteamento do setor imobiliário, para cuja expansão desenfreada o próprio Ministério Público faz vistas grossas, ao permitir a construção de uma série de espigões na última área descampada de Santos – a Ponta da Praia e bairros adjacentes – sem o devido estudo de impacto ambiental.

– Loteamento de obras públicas, que só saem das gavetas após anos de tratativas e discussões burocráticas, como a sempre adiada ponte entre Santos e Guarujá, que de uma hora para outra sumiu dos noticiários.

– Loteamento da própria orla da praia, para a realização sistemática de provas esportivas que implicam na interdição, aos fins de semana, das avenidas de maior movimento da cidade, atazanando a vida de milhares de pessoas. Sem falar no loteamento da própria areia da praia, cada vez mais infestado de barracas, carrinheiros, farofeiros, quadras de tamboréu e por aí afora.

A pauta vai mais longe, mas creio que por aí já dá para perceber que assuntos é o que não faltam para a imprensa explorar. Uma imprensa séria e comprometida com sua comunidade, obviamente, que não viva de aparências e de enganar seu público com um jornalismo de salamaleques e rapapés como tem feito A Tribuna.

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Jornalista, Santos, SP