Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um país de ambiência humana

É lamentável que somente os momentos de crise nos despertem para o ritmo predatório do nosso ‘processo de desenvolvimento’. Como bem apontou o jornalista e ambientalista Washington Novaes em artigo recente, ao mesmo tempo em que o mundo acompanhava a aprovação, pelo Congresso norte-americano, de um plano de US$ 700 bilhões para conter a crise financeira global, não foi dada importância alguma à notícia, divulgada por uma ONG canadense, de que no dia 23 de setembro a humanidade ultrapassara, este ano, o consumo de todos os recursos que o planeta pode produzir ao longo de 365 dias.

Novaes lembrou bem José A. Lutzenberger: ‘A crise de energia e matérias-primas que hoje solapa os alicerces da sociedade industrial demonstra que os recursos desta nave espacial, o planeta Terra, são finitos. Esta crise refuta as premissas básicas da sociedade de consumo, com sua ideologia de expansão e esbanjamento ilimitados.’

Este é o gancho eu que precisava para tratar daquilo que mais me diz respeito: a defesa de nossos povos indígenas. Pode parecer estranha a ligação de dois temas tão distantes, mas é sem dúvida, oportuna. Não vou escrever; vou citar um discurso proferido por Orlando Villas Bôas em 1972. Nesse momento de crise, espero que o texto contribua para a reflexão sobre a construção de um Brasil novo, sem a preocupação de transformá-lo numa ‘grande potência’, mas sim, num país de ambiência humana.

Perda da autonomia e do estímulo

‘O índio, sob todos os aspectos, está intimamente ligado às condições naturais do meio em que vive, e não se poderia esperar sua continuidade no tempo em áreas devastadas pelo desenvolvimento, o qual vem sendo feito – como se observa na Amazônia e no Brasil Central – através de métodos predatórios, e que se caracterizam pelo imediatismo.

De que forma, então, se poderiam conciliar as duas sociedades: uma estável, ajustada ao meio, equilibrada, apoiada em padrões culturais bem definidos; e outra, adventícia, desordenada, que chega para transformar florestas em pastagens, e cujos membros não mantém entre si nenhum vínculo, exceto o mesmo e constante propósito de obter lucros?

A solução apontada pelos que se dizem, ou se julgam, entendidos no assunto é a integração do índio na sociedade civilizada. Entretanto, uma pergunta muito simples seria suficiente para causar embaraço aos que militam em favor dessa solução: integrar em quê? Nos pequenos e dispersos grupos de peões que, agregados às fazendas, representam a sociedade nacional? Na `saudável´ comunidade formada por seringueiros, castanheiros, abridores de estradas ou empregados de companhias de mineração, que também representam a nossa sociedade? Ou então fazer com que o índio, abandonando sua unidade tribal, venha a transformar-se em mão-de-obra nos empreendimentos surgidos nas terras que antes constituíam seus próprios domínios? Atraídos pelos `civilizados´, os índios são, muitas vezes, persuadidos a abandonar suas aldeias para residir nas fazendas, onde sempre, e automaticamente, perdem sua autonomia, os estímulos e a oportunidade para as suas recreações, bem como a plena disponibilidade do tempo para a obtenção dos tradicionais e fartos recursos da sua subsistência.

Desumanização do trabalho

Além dessas circunstâncias demolidoras da sua vida sócio-econômica, os índios, passando a viver entre civilizados isolados no sertão, transformam-se em objeto de exploração indiscriminada. Engajados nesse processo fatal (tido por integrativo), a meta final a que são levados nada mais é do que a sua total desintegração moral e física. Assim, de sociedades coesas, organizadas à sua maneira, e sustentadas por um complexo de tradições, traços e costumes que as motivam, vão passando a uma condição de marginalidade, com a perda gradativa da sua identificação.

Nos tempos atuais, os que detêm o poder econômico e político, agindo como homens práticos, julgam-se habilitados a conduzir o mundo para um brilhante futuro. Na concepção de todos eles – ressalvadas algumas exceções – o desenvolvimento material, o progresso, conseguido por meio de uma tecnologia cada vez mais refinada e complexa, é suficiente para solucionar todos os problemas da humanidade. E tudo aquilo que se opõe a essa ordem de idéias é imediatamente incluído no plano do romantismo e da utopia.

Não pretendemos, evidentemente, que seja estancado o nosso desenvolvimento, ou que se regresse a posições já ultrapassadas. Em resumo, não preconizamos o retorno ao coche, ao lampião a gás, ao navio à vela. Continuemos o progresso, mas um progresso verdadeiro, suavizado, que não implique na desumanização do trabalho e do relacionamento entre os povos, as classes e as criaturas entre si.

Um Brasil novo

Por que não amainar a fúria presente, essa corrida desenfreada para a conquista de novas riquezas e de poderes ilimitados? Se nessa altura já verificamos que simples ideologias políticas não encerram a solução para os grandes, profundos e antigos problemas do homem, usemos então o discernimento, os poderosos recursos da ciência e da consciência moral, a fim de atingirmos o ideal aspirado por todos os homens livres: um padrão de vida em consonância com a dignidade humana. Logicamente, não seria apenas através de uma reformulação das relações entre as criaturas que se poderia alcançar essa estabilidade social. É necessário também – e mesmo imprescindível – que o meio ambiente seja preservado como espaço vital para as gerações que nos sucederão.

Certamente não seremos ouvidos naquilo que mais nos diz respeito: a defesa de nossas etnias indígenas e das vastas florestas do interior. É oportuno lembrar que, com relação a estas últimas, não estamos atentando para os erros do passado, cometidos nas regiões mais férteis do país, situadas ao sul, e que hoje estão ameaçadas por todas as formas da terrível erosão. Estamos, isso sim, através de projetos apressados, sem defender a terra, transformando em pastagens as áreas mais saudáveis e propícias à agricultura encontráveis no Brasil-Central e Amazônia. E ainda, não menos grave, implantando uma natureza de economia da qual os futuros ocupantes das referidas áreas não poderão participar.

A civilização tem seus alicerces fundados na contribuição de todos os povos. Através da história temos contribuído de alguma forma. Hoje, nestes difíceis dias por que passa o mundo, ofereçamos um exemplo, um bem superior a todos os demais – construindo um Brasil novo, sem a preocupação de transformá-lo numa `grande potência´, mas sim, num país de ambiência humana.’

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Indigenista, bacharel em Filosofia e Direito, membro do Conselho Indigenista da Funai de 2000 a 2004 e filho do sertanista e indigenista Orlando Villas Bôas