Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma abertura possível para a narrativa brasileira

Está no ar uma fotorreportagem do Diário do Comércio sobre trombadinhas em uma esquina de São Paulo. Apesar de algum grau de inovação da mídia brasileira como o uso de som e da multimídia, a fotorreportagem mostra em slideshow uma narrativa linear com voz off superficial, descritiva, acrítica e neutra. Apresenta-se ainda como uma precariedade hipertextual redutora das camadas significantes possíveis do fato.

Se pensarmos a voz off no caso podemos entender alguma novidade na fotorreportagem no meio jornalístico brasileiro, mas a narrativa linear em slideshow dessas imagens em nada se aproxima das grandes narrativas do fotojornalismo, ou ainda, de algumas experiências muito mais inovadoras de nossos vizinhos argentinos. A infelicidade dessa reportagem está no ponto de vista da câmara; é quase uma câmara de vigilância a serviço de um controle da sociedade e nada tem de ‘denúncia’, talvez somente um alerta para a polícia que estará nesse ponto no outro dia fazendo sua cena, prendendo alguns pequenos infratores, e satisfazendo a classe média que não tem condições para vidros blindados.

Uma imagem era suficiente para contar essa pequena história, nada mais, e sem a voz off que nada acrescenta. O instantâneo da imagem da quebra do vidro seria suficiente para compreendermos a situação, pois é sabida e vivenciada para aqueles que podem ter carros – são os que acessam essas imagens, e dentro desta perspectiva o conceito de foto eficiente de Milton Guran aplicado a essa imagem única atende o pressuposto da informação jornalística. Penso que anterioridade e a posterioridade da seqüência podem ser desenvolvidas em nosso imaginário somente com essa foto.

A fotorreportagem é também carregada de ambigüidade, pois logo no título temos um jogo de palavras que nos lembra o clássico filme do cinema marginal paulista O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla. No caso do filme, o apelido para o bandido foi dado na época pela imprensa, como no caso da fotorreportagem do Diário do Comércio podemos associar e ler ‘os meninos bandidos da luz vermelha’. As imagens partem de um único ponto de vista, autoritário, distante, sem proximidade das condições de vida desses infratores, assim, quando vemos imagens dos meninos falcões nos surpreendemos com o envolvimento endógeno do realizador das imagens e podemos nos aproximar um pouco das subcondições humanas de existência que nossa sociedade produz.

Já dizia o bom e velho mestre Robert Capa uma frase muito repetida e, infelizmente, ainda não aprendida e temos de repeti-la sempre: ‘Se a foto não ficou boa é porque o fotógrafo não estava próximo o suficiente do fato’. O ponto de vista da câmera dessa fotorreportagem é o mesmo de uma câmara de vigilância como outras tantas espalhadas pelas nossas cidades, e o Jornal Nacional faz isso quase todos os dias com imagem em movimento, na condição de substituto ou simulacro de polícia.

Mira telescópica

Se a velhinha aposentada filma com sua câmara a boca-de-fumo do ponto de vista de sua janela e entrega para a polícia podemos compreender a sua ‘câmara vigilante’ como testemunha. Se Walker Evans o faz no subway de Nova York está dentro de um campo do ensaio fotográfico, mas podemos até mesmo condenar sua postura ética de se esconder como fotógrafo. Não me parece, entretanto, que cabe a imprensa fazer esse papel acentuado na contemporaneidade e fazer ponto de vigia deixando o contexto sócio-cultural de lado (sugiro ver o artigo de Arlindo Machado, ‘Máquinas de Vigiar’, Revista USP, Dossiê Tecnologias, n.07, 1990, p.23-32).

Sinto tristeza pelo fotógrafo que mesmo com senso de oportunidade e técnica tornou-se somente um mero funcionário de grande aparelho midiático, quase um paparazzo da desgraça social, talvez imanência natural da fotografia-choque. São imagens com objetividade carregada pela distância de ‘imparcialidade e neutralidade’ para uma cidade apavorada por traumas de vida coletiva em caos e sem perspectiva, que reforçam a nossa vontade de ausência das ruas, recolhidos em nossas casas, aconchegantes ‘cantos de mundo’, como dizia Jean Baudrillard.

A infelicidade do ponto de vista dessa fotorreportagem é de uma câmara que nada aprofunda nas condições de vida desses pequenos infratores. Os grandes fotógrafos da documentação social estão removendo as terras com seus restos de ossos. Uma distância que banaliza o ato agressivo como natural da condição de existência dessas pessoas, assim somos brutalizados duas vezes, no assalto no trânsito e nas próprias fotos. O ponto de vista da câmara é o mesmo de uma arma de longo alcance com mira telescópica, um fuzil fotográfico (lembram de Marey?). Em quem os tiros imagens acertam?

Multimídias inovadoras

O jornal argentino Clarín já há alguns anos faz uso intenso da multimídia. No caso da fotografia há uma exploração da potencialidade do meio e podemos ver um retorno do envolvimento do fotógrafo com a temática, com uma inserção sem a pressa do cotidiano, como nos velhos tempos de O Cruzeiro e Realidade, com nossos mestres José Medeiros, Pierre Verger, Flávio Damm, Walter Firmo, Juca Martins e outros tantos. A voz off nas fotorreportagens e nas multimídias do Clarín, é elemento de conteúdo interagindo com as imagens e não de mera descrição banal do visível fotografado. É ao mesmo tempo inovação em fotorreportagem com uso de multimídia e encontro com os sentimentos humanos. Há vários exemplos no diário Clarín.

Entre todas sugiro visitar a fotorreportagem de Gustavo Tarquini, realizado na pobre província de Santiago del Estero, ao norte da Argentina. Conheci Gustavo Tarquini pessoalmente e pude ver de perto seu envolvimento com as questões sociais de sua cidade e sua província. Gustavo Tarquini não é fotógrafo contratado do Clarín, mas conseguiu negociar seu trabalho que envolveu vários meses e publicá-lo depois de alguns anos.

As fotorreportagens do Diário do Comércio abrem possibilidade de espaço para um fotojornalismo autônomo, pois o próprio Diário do Comércio contrata serviços de agências e fotógrafos, então, que possamos respirar e ir além da pressa editorial dos fatos banais do cotidiano. Fica a sugestão de abertura para que novas janelas sobre nossa sociedade se abram com espaços para que os fotógrafos brasileiros publiquem suas narrativas fotojornalísticas com características de documentação social. Quem sabe possamos ver multimídias inovadoras e narrativas fotojornalísticas produzidas por fotógrafos independentes publicadas na mídia brasileira. Temos algo parecido na grande imprensa brasileira?

Com a bola, o Diário do Comércio que começou o jogo e pode inovar ainda mais.

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Fotógrafo e professor livre docente no Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação, Instituto de Artes/Unicamp, e editor da revista online Studium 23