Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma jovem centenária revista de cultura

Na verdade, estamos homenageando uma defunta, que recebeu a injeção letal no dia 20 de novembro de 2003, aos 96 anos e meio, por uma decisão do Conselho diretor da Editora Vozes.

Razões financeiras. Seus assinantes se haviam reduzido a 375 e a venda avulsa chegava a 84. Reconhecia o Conselho Diretor da Editora que não despertava mais interesse, apesar de ter tido em pouco tempo três diferentes redatores. Alegava ainda que todos os campos que a revista costumava cobrir, ou poderia cobrir, estavam ocupados por revistas especializadas.

Diante dos protestos dos Frades de minha Província que, com razão, não reconheciam no Conselho Diretor autoridade suficiente para matar uma revista já quase centenária e monumental expressão da cultura e da religião no Brasil, o Governo Provincial tentou ressuscitá-la, em janeiro de 2004, oferecendo a revista à Universidade de Bragança Paulista – a USF – na esperança de que algum de seus departamentos quisesse assumir a redação e a administração. No dia 26 de fevereiro de 2004, a USF mandou carta, agradecendo a oportunidade, mas recusando a oferta.

Houve uma nova tentativa. O Governo Provincial me escreveu carta, perguntando pela possibilidade de eu ressuscitá-la, ligando-a ao Convento de Santo Antônio do Rio. Cheguei a reunir um grupo de amigos. É verdade que Santo Antônio ressuscitou mortos, quando viveu no século XIII. Mas como ressuscitar juridicamente uma revista declarada morta no seu último e infeliz editorial? Como dar sentido e vida ao título Vozes, fora da Editora Vozes? Como podia eu dizer sim, sem nenhum suporte financeiro? Nem eu dispunha de tempo, considerando o novo campo de trabalho em que me encontrava, para sair à procura de dinheiro, gente e publicidade. A defunta continuou e continua morta.

Saúdo, portanto, uma defunta, que me foi cara. Agradeço a todos Vocês, especialmente ao Jorge Cláudio Ribeiro pela memória que quiseram fazer à Revista, que teria completado cem anos em julho passado. Cultivar a memória é reconhecer a grandeza de um passado que merece ser celebrado.

Celebremos, portanto!

Caminho e fama

Não é a primeira vez que a Revista Vozes recebe uma homenagem especial. Quando ela completou 60 anos, foi largamente celebrada na Academia Brasileira de Letras, em várias Academias de Letras dos Estados, em muitas Câmaras municipais. Ainda conservo comigo esse material celebrativo.

Quando ela completou 80 anos, a UCBC lhe fez festa no dia 27 de outubro de 1987, por ocasião do XV Congresso Nacional, no salão nobre da Universidade Metodista de São Bernardo. Naquela ocasião, ao agradecer, eu dizia: ’80 anos de revista de cultura no Brasil é mais que aventura, é milagre. E milagre raro. Porque, quando não é a questão financeira que derruba uma revista cultural, é a agressão da censura que lhe corta a sobrevivência’.

A Revista de Cultura Vozes nasceu de uma necessidade e, em linguagem bíblica, de um espírito profético. Não tendo tipografias (porque eram proibidas no tempo do Império), pressionados pela necessidade de livros didáticos, catequéticos e cultuais, os Franciscanos criaram, em março de 1901 a Tipografia da Escola Gratuita São José. Observem como a tipografia nasce ligada a uma escola. Nela, na Escola Gratuita São José, eram testados os livros escolares antes de serem impressos. E vários autores eram professores daquela escola. Os alunos com mais de 14 anos da Escola Gratuita São José passaram a ser aprendizes de tipografia. Dezenas deles encontraram emprego nos jornais do Rio de Janeiro, à medida que a imprensa carioca foi nascendo, na esteira da liberdade de expressão concedida pela República.

Não só o problema escolar e catequético enfrentaram os Franciscanos alemães, restauradores da Família Franciscana no Brasil, humilhada e reduzida, em 1889, a um único Frade da Bahia para baixo e a seis da Bahia para cima. Os Frades se preocuparam com a elite intelectual. Eram raros os intelectuais católicos no início do século passado. Era preciso um elo de união entre eles. Era preciso dar evasão ao seu pensamento. Era preciso alimentar o grupo para dar-lhe chance de multiplicação.

Desta necessidade nasceu a revista Vozes de Petrópolis, com o subtítulo ‘Revista mensal, religiosa, científica e literária’. No seu primeiro editorial prometia: ‘Vozes de Petrópolis terá caráter geral e não puramente religioso. A revista trará artigos variados, que terão o cunho da atualidade. Nenhuma região da ciência e da técnica, da teoria e da prática será excluída do programa’.

Em 1911, a revista havia feito tanto caminho e tanta fama que a Tipografia da Escola Gratuita São José perdera já seu nome para ser conhecida como ‘Tipografia da Vozes’, hoje Editora Vozes, Vozes por causa da revista.

Repercussão do editorial

O primeiro redator foi um Frade, um homem a quem os brasileiros não podem continuar a deixá-lo na marginalidade da história. Foi cronista de fatos internacionais, foi poeta e romancista, foi professor e músico, editor e crítico de arte, um homem de fé e ciência, pioneiro em inúmeros campos da imprensa, da crítica literária e da formação do senso crítico. Refiro-me a Frei Pedro Sinzig, falecido no dia 8 de dezembro de 1952.

Até os anos 40, a Vozes de Petrópolis foi a única, digamos assim, revista da elite intelectual católica. Com a chegada das diferentes famílias religiosas, como os salesianos, os irmãos maristas, os jesuítas, os lazaristas e as numerosas congregações femininas, multiplicaram-se os colégios. Por longo tempo os colégios católicos foram o sustentáculo financeiro da revista, através de assinatura. Muitos professores, conhecendo-a no colégio, passaram a assiná-la.

Em 1942, a Editora Vozes se reestruturou, assumiu novos estatutos, criou a Revista Eclesiástica Brasileira. Foi naquele momento que a Vozes de Petrópolis mudou o nome para Vozes – Revista Católica de Cultura.

E foi com esse nome que assumi a redação da revista em janeiro de 1966, exatamente um mês depois do encerramento do Concílio Vaticano II. Encontrei prontos os números de fevereiro e março. A revista passava por uma crise de definição. Se pusera a combater Maritain, Teilhard de Chardin, Anísio Teixeira e muitas idéias de intelectuais do grupo Anhembi, em torno da figura de Paulo Duarte, e pior, combatia as idéias católicas do Centro Dom Vital do Rio de Janeiro, ligado a Alceu Amoroso Lima. E não se dera bem. No Brasil acontecera a ditadura. Na Igreja sopravam fortes os ventos da renovação.

Recebi o cargo de redator com uma incumbência específica: atualizar a revista e pô-la a serviço do pós Concílio Vaticano II, sobretudo do documento sobre a Igreja no mundo de hoje, que tinha e tem o belo título de Gaudium et Spes (Alegria e Esperança).

A revista estava para celebrar 60 anos. Montei todo um programa de celebrações para 1967/1968 com uma finalidade precisa: mostrar uma nova linha editorial da revista, abrindo para os novos temas propostos pelo Concílio; fazê-la conhecida aos intelectuais, sobretudo aos de minha geração, sem, porém, desprezar os mais velhos, porque sempre tive certeza de que não há renovação, sem respeito ao passado.

Escrevi um editorial em janeiro de 1967, que repercutiu muito, porque levei pessoalmente aquele número da revista à redação de O Globo, Diário de Notícias, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Estado de S.Paulo, e o mandei a mais de três centenas de intelectuais e jornalistas, alheios aos quadros da Editora. Naquele editorial, eu dizia:

‘Estamos a serviço do Homem. Não de grupos de homens. Buscamos estar, com o Cristo do Evangelho perenizado na Igreja, dentro do século XX, já rasgando horizontes para o século XXI. A Igreja reconheceu que ‘em nossos dias, arrebatado pela admiração das próprias descobertas e do próprio poder, o gênero humano freqüentemente debate problemas angustiantes sobre a evolução moderna do mundo, sobre o lugar e função do homem no universo inteiro, sobre o sentido de seu esforço individual e coletivo e, em conclusão, sobre o fim último das coisas e do homem’ (Gaudium et Spes, n. 3). Estamos solidários com este homem. Nenhuma ambição nos move a não ser a de servir. Mas servir para construir. Servir para ativar. Servir para que o homem possa ‘crescer em humanidade, valer mais, ser mais’’ (Populorum Progressio, n. 15).

L’Osservatore Romano

Um dos primeiros a se manifestar foi Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, muitas vezes atacado pela Revista Vozes antes de minha chegada. Foi à editora para me conhecer, para pôr-se à disposição da revista e para me apresentar aos intelectuais católicos do Rio de Janeiro, interessados nas idéias e valores do Concílio Vaticano II.

Confesso que provoquei homenagens aos 60 anos da revista onde podia. Assim, no dia 30 de junho de 1967, fizemos uma solene Missa concelebrada na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis. Muitas autoridades presentes. A nota nova, que chamou a atenção: o pregador foi um leigo, que ainda não descobrira ser um intelectual de mancheia: Dr. Manoel Machado dos Santos. Aquele sermão, aquela homilia lhe valeu o convite para ser Reitor da Universidade Católica de Petrópolis.

Dias depois a Academia Brasileira de Letras dedicou uma sessão inteira à revista, na qual falaram o Presidente Austregésilo de Athayde, Peregrino Júnior, Ivan Lins. E Alceu Amoroso Lima. Peregrino Júnior chegou a dizer que ‘nenhum intelectual brasileiro pode ignorar a revista, que é das mais atuais e palpitantes’. Austregésilo de Athayde dedicou uma inteira coluna sua no Jornal do Brasil aos 60 anos da revista. Também no Jornal do Brasil, Alceu Amoroso Lima escreveu uma belíssima página em que dizia:

‘Basta confrontar a revista de ontem com a de hoje … para compreender o sentido novo que a revista adquiriu. Como se alargou. Como se atualizou. Como entrou, já agora, na corrente da vida intelectual brasileira, com uma contribuição preciosa de espiritualidade católica mais autêntica, mais aberta a todas as vozes do horizonte espiritual e intelectual dos nossos dias … E com isso passa da margem à corrente da vida intelectual brasileira, onde já agora figura como uma presença inconfundível’

Ainda no mês de julho a Revista deu duas recepções: uma num ateliê em Copacabana, onde havia uma exposição de caricaturas de Alvarus. Passaram por lá mais de 500 pessoas. Outra em Petrópolis, na mansão dos Bonicelli (ele arquiteto e ela artista plástica), reservada a escritores do Rio, uma retribuição à Academia Brasileira de Letras. Vários acadêmicos subiram a serra.

Não posso esquecer um fato que me surpreendeu muito. L’Osservatore Romano, o jornal oficioso do Vaticano, em sua edição diária, no dia 31 de julho de 1967, fez um longo comentário sobre a Revista, dizendo entre outras coisas:

‘Oggi la rivista Vozes è entrata decisamente nella discussione dei temi conciliari e delle questioni che agitano il Brasile e il mondo. Uscendo dalla strettezza di un cattolicesimo ‘bitolado’ e diffidentemente conservatore, examina e analizza i problemi caldi dell’ora come socializzazione e riforma agraria, riabilitazione del Nord-Est Brasiliano, cristianesimo e marxismo, regolamentazione delle nascite, psicanalisi e pedagogia moderna, celibato ecclesiastico, economia popolare etc. La ripercussione nel paese è straordinaria’.

O mesmo artigo saiu na edição francesa do L’Osservatore. Ainda não existia a edição em língua portuguesa.

Fato inédito

Não posso esquecer uma ajuda grande que recebi. Estava pensando como visitar todos os colégios e escolas católicas (coisa que fiz mais tarde), quando me procurou o Padre José Vasconcellos, presidente da AEC e membro do Conselho Federal de Educação. Pensava ele elaborar um boletim mensal para os professores e colégios ligados à AEC e perguntava pela possibilidade de sair como suplemento da Revista Vozes. Abriguei, não como suplemento, mas como caderno especial o boletim de 16 páginas mensais, com excelente material didático. Mantive o caderno de maio de 1966 a dezembro de 1969, até que o Padre Vasconcellos deixasse o cargo. Foi uma forma de segurar as assinaturas dos colégios e escolas de todo o Brasil e conseguir a assinatura de muitos professores.

A redação da revista cresceu muito. Precisou de secretário. Cito-os, não sei se na exata ordem de seu tempo de trabalho na redação: Dário Deschamps, jovem catarinense, que não chegou a trabalhar um ano, porque se candidatou a vice-prefeito de sua cidade e ganhou a eleição. Já é falecido. Sinval Itacarambi Leão, hoje dono da prestigiosa revista Imprensa. Álvaro Sá, engenheiro e poeta, já falecido. Dermi Azevedo, jornalista, que deixou a Vozes para trabalhar na Folha de S.Paulo. Moacy Cirne, poeta, professor e escritor. E Thomaz Filho, poeta. Os Secretários não interferiram na linha filosófico-ideológica da revista, mas cada um deles abriu o leque de colaboradores e me deram segurança. Sou muito grato a todos eles.

Ninguém ignora o mal feito pela ditadura à Imprensa, sobretudo no Governo Medici. Mais tarde soube que a Revista Vozes estava fichada no SNI como ‘Revista filosófica de esquerda, não panfletária’. Nunca nos agrediram. É verdade que nos cuidávamos, dentro do bom senso. Muitas vezes montávamos o número da revista atrás de palavras e expressões que não constavam no dicionário dos censores da ditadura como: Problemas de lingüística descritiva, Semântica Estrutural, Semiologia e Teoria do Discurso, História das estórias em quadrinhos, Dinâmica & Descompasso, Ideologia anacrônica, Festival do Subconsciente, O Salto para o Objeto, A Poética da Denotação, Cibernética e Ideologia.

Pela terceira vez a revista mudou de nome. A partir de janeiro de 1969, a revista passou a viver com o título: Revista de Cultura Vozes. Mudamos o título sem alardes, sem aviso prévio ou editorial, que justificassem a mudança. A mudança consistiu na retirada do adjetivo ‘Católica’. Simplesmente queríamos superar o sectarismo. Queríamos abrir outras portas, permanecendo absolutamente fiéis aos valores do Evangelho. O jornal O Estado de S.Paulo publicou a coluna do Hélio Damante, o único a protestar. Como ele era um jornalista digno, respondi a ele pessoalmente. Entre outras coisas eu lhe disse:

‘Para ser uma revista católica, não precisamos ostentar nenhum adjetivo. Ela será sempre uma revista de mundividência católica. O que significa abrangência, não sectarismo. Seriedade no posicionamento diante dos problemas, mas sem dicotomizar o mundo e a história, sem perder de vista que sagrado e profano são duas faces de uma mesma realidade humana. Não há, pois, por que contrapô-las, não há por que perseguir o profano em nome do sagrado; respeitar-lhes a autonomia significa colocar em diálogo ambas as dimensões humanas. Em diálogo, não em cego confronto’.

Registro um fato inédito entre as revistas de cultura do Brasil: ao menos dois de seus números tiveram uma segunda edição.

Palavra mantida

Se a censura da ditadura não nos atingiu, atingiu-nos a censura do Vaticano. O Núncio Apostólico em pessoa (Dom Sebastião Baggio) foi a Petrópolis reclamar das três revistas da Editora. Da REB protestou contra um artigo de Frei Boaventura Kloppenburg: ‘A perigosa arte de ser bispo’. Da Sponsa Christi, de um artigo de Michael Novak, intitulado ‘As novas Religiosas’. Da Revista Vozes apontou um artigo do Padre Jaime Snoek sobre a homofilia (chegou a dizer que concordava com o conteúdo, mas o tema não ficava bem em revista católica).

Sua ira fulminava, sobretudo, um pequeno artigo de pouco mais de três páginas, mais nota que artigo, com o título ‘Quem informa o Papa’. A nota fazia uma comparação entre um Manifesto de católicos mineiros, apegados aos tempos anteriores ao Concílio, e uma carta admoestativa do Papa Paulo VI à CNBB. A nota concluía que a carta do Papa estava calcada sobre o Manifesto mineiro, condenado pela Conferência dos Bispos do Brasil. E trazia, lado a lado, os dois textos.

A partir dessa visita do Núncio, a Editora Vozes e suas revistas passaram a ser alvos da censura da Santa Sé, censura crescente até a intervenção em 1991. O que a ditadura não fizera, fez o Vaticano.

Deixei a redação da Revista em dezembro de 1987, após 21 anos de redator. Sucedeu-me por algum tempo Leonardo Boff. Fui eu que o indiquei ao Governo Provincial, já que ele fora proibido, pelo então Cardeal Ratzinger, de redigir a REB. Quando Leonardo deixou a Ordem, a revista foi assumida por pessoas estranhas à Editora. A revista chegou a ser terceirizada. E trocou mais uma vez de nome. A partir de janeiro de 1993, ela passou a se chamar Cultura Vozes. Para desgosto de todos que têm biblioteca, mudaram o tamanho e o formato da revista, que ela vinha conservando desde sua fundação. Parece um detalhe, mas para mim foi o começo de seu fim. Como a editora achou por bem cortar as assinaturas de cortesia, não vi nenhum número da revista de janeiro de 1995 a outubro de 2003, porque me encontrava na Cúria Geral dos Franciscanos, em Roma e lá ela não chegava.

Demorei-me muito em falar de como renovei a revista na segunda metade dos anos 60. Não me demorei por vaidade ou como demonstração de heroísmo. Mas para dizer que os três argumentos usados para matá-la em 2003, poderiam ter sido usados para matá-la já em janeiro de 1966. Cito textualmente os três argumentos: ‘1. Alto déficit da revista. 2. Não se conseguir nenhuma proposta nova que pudesse dar esperança de reversão do quadro. 3. Falta de foco da publicação, sendo este o ponto que mais pesa em todo esse processo’.

As várias trocas do nome da revista mantiveram sempre a palavra ‘Vozes’. Porque ela não foi somente uma voz, mas foi vozes de muitos autores, vozes de muitos pensamentos e ansiedades, vozes de muitas pesquisas e descobertas, vozes de muitos sentimentos e de diferentes tempos, vozes da religião, da cultura, da ciência, e agora uma das muitas vozes da história que várias gerações conseguiram fazer. Obrigado.

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Editor da Revista Vozes na década de 1970