Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Veneno aos pouquinhos também mata

No meu tempo de ginásio, segundo ou terceiro ano, os livros de História traziam inúmeras anotações de pé de página, que nos preocupavam muito porque eram as preferidas do professor para os testes orais de surpresa, e esses serviam para somar pontos às provas mensais. Uma dessas anotações era sobre o diálogo entre um general que, às portas de um reino onde o papa estava provisoriamente instalado, disse-lhe que viera com a missão de destruir a Igreja Católica. O pontífice respondeu, sem perder a calma, que isso era impossível, pois os próprios padres não conseguiram realizar tal proeza.

Como eu faço a citação de memória, não tenho condições de contar o desdobramento desse diálogo, nem mesmo posso garantir se o general foi recebido pelo próprio papa ou por um bispo, mas a parte de que lembrei é a que interessa. A conversa poderia ter ocorrido, por exemplo, entre um oficial que participou do golpe de 64, no Brasil, e um dono de jornal ou jornalista. Na verdade, houve inúmeras tentativas de acabar com os jornais e a imprensa de modo geral que resistia ao autoritarismo. O regime militar fracassou nessa missão, embora tenha feito muitos estragos, porque ignorou um fato: a imprensa resiste antes de tudo a muitas pessoas que nela atuam e procuram destruí-la, sobretudo os próprios donos das empresas de comunicação.

As matérias feitas sob encomenda, para beneficiar o próprio órgão de comunicação, segmentos específicos, grupos de pessoas ou indivíduos, muitas vezes prejudicam a população ou parte dela. O não-atendimento ou atendimento apenas parcial ao direito de resposta ou reparo por publicação prejudicial a pessoas ou instituições é também freqüente, e a impressão predominante é de que o respeito a essa exigência é uma concessão que a empresa faz à vítima de seu erro.

Enganação

A relação de comportamentos que ameaçam a imprensa é extensa e desnecessária porque nós, jornalistas, a conhecemos bem. No entanto, existe um exemplo pouco lembrado e que mostra como os jornais agem, muitas vezes, como o jacaré linguarudo, que fala da cauda do macaco enquanto procura esconder a própria no fundo do rio. Refiro-me à propaganda enganosa de produtos, que a imprensa tanto combate, mas às vezes ela mesma engrossa o grupo dos enganadores.

De responsabilidade dos editores, há enganações como as chamadas de capa que não condizem com o teor das matérias das páginas internas. Matérias mal apuradas, incompletas, com incriminações irresponsáveis, feitas por repórteres inexperientes e às vezes produzidas de propósito, para atender a diversos interesses. Nada disso é novidade para os nossos prezados leitores, que devem estar se lembrando de muitos outros exemplos.

De responsabilidade das próprias empresas (o que não isenta os jornalistas que nela trabalham) é a enganação do jornal incompleto, o produto com chamadas atraentes na capa para cadernos disso e daquilo, com a surpresa de que falta o ‘isso’ ou o ‘aquilo’ no miolo da publicação. Experimentem comprar o Jornal do Brasil em Belo Horizonte, na sexta-feira. Ele nunca traz o caderno ‘Programa’, embora o preço do jornal nesse dia seja mais alto (R$ 1,50) justamente por causa do encarte. Os donos das bancas juram que o jornal chega incompleto e não adianta reclamar.

Descrédito

Leio assiduamente o JB desde o meu primeiro emprego em jornal, há 36 anos, e até por isso estranho o comportamento da empresa. A distribuição do jornal incompleto constitui desrespeito ao leitor, previsto no Código de Defesa do Consumidor. Caso a direção do JB, ou quem seja responsável por isso, decida que leitores de outros estados não poderão tirar proveito das matérias do Caderno ‘Programa’, dirigidas à população do Rio de Janeiro, uma hipótese absurda, que mantenha o preço normal de R$ 1 para a edição. Mais justo ainda seria enviar a edição completa das sextas-feiras a todos os estados onde o JB tem leitores.

O que está em discussão não é o preço do jornal, embora a edição com anúncio do encarte na primeira página custe 50% mais para o consumidor do produto. Talvez os jornalistas Fausto Wolff, Mauro Santayana, Villas-Bôas Corrêa e outros, respeitados por sua conduta correta e resistência aos desmandos, não saibam que o jornal onde publicam seus textos venha cometendo essa discriminação contra os leitores de outros estados. Certamente não imaginam que o JB sequer responda aos e-mails do leitor que reclama a entrega da publicação completa pela qual pagou.

Problemas ‘pequenos’ como este têm que ser resolvidos porque, de alguma forma, contribuem para o assassinato de um jornal e, no conjunto, podem levar ao descrédito da imprensa. Veneno em pequenas doses, aplicado continuamente, também mata.

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Jornalista, Minas Gerais