Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Versões e inversões

‘O problema não é o que acontece. Mas o que nós fazemos com o que acontece.’

Esta frase, encontrada em muitos dos chamados manuais de auto-ajuda com o objetivo de oferecer ao leitor em questão a possibilidade de sair do vitimismo e reagir de modo construtivo a algum infortúnio, caberia perfeitamente em um manual de jornalismo, uma vez que boa parte desses profissionais deparam, em algum momento, com variadas possibilidades de enfoque das notícias, em seus igualmente variados meios de comunicação.

Comumente, se fizermos um exercício de ler um mesmo fato retratado em jornais diferentes, por exemplo, será bem fácil nos surpreendermos com os ângulos profundamente contraditórios em que são relatados.

Ao sintonizarmos um determinado canal, podemos receber um perfil positivo de uma situação específica, perfil este que sofrerá completa alteração, em seu oposto, se resolvermos sintonizar um outro canal que tenha uma linha editorial voltada para outra direção.

Como isso é possível?

Como um mesmo fato, ocorrido de uma única maneira, pode gerar interpretações tão díspares?

‘Comprados nas prateleiras’

Se procurarmos um lado positivo desse problema, talvez consigamos encontrar o argumento de que seja salutar tal multiplicidade de visões de um mesmo tema e que esse seria, enfim, um dos papéis fundamentais da imprensa: tornar públicos pensamentos e versões heterogêneas dos acontecimentos, deixando ao receptor-leitor-espectador-ouvinte a tarefa de analisar e escolher a versão que lhe é mais apropriada.

Infelizmente, porém, há outros fatores para levarmos em consideração, e eles expulsarão nossa inocência desse idílico paraíso.

Em primeiro lugar, o nível educacional de nosso país é, no mínimo, precário, o que por si só invalida muitas pessoas de exercer esse poder de decidir a linha ideológica a ser escolhida.

Mesmo os mais privilegiados, por estudarem de forma autômata e com atenção fragmentada, muitas vezes apenas absorvem conhecimentos ‘comprados nas prateleiras’, sem a devida passada de vista, pelo menos, na data de validade.

Quem sabe o que acontece?

Em segundo lugar, temos as sombras (não exclusivas dos jornalistas, é claro) da personalidade do ser humano, que o levam a ser conduzido pela vaidade, arrogância e ambição, todas exacerbadas e que se tornam elementos que contribuem para que seu ponto de vista se atenha a características peculiares, e às vezes disformes, de uma notícia.

Em terceiro lugar – e nessa classificação não pela força que tem, mas pela dificuldade em ser percebida –, as manipulações dos fatos são motivadas por interesses comerciais e financeiros dos grupos detentores dos veículos de comunicação.

Estes não entregam o ‘produto-notícia’ de uma maneira xis por bondade, acaso ou missão de informar. Produzem-no, embalam e entregam, sim, pelo lucro. E para fermentá-lo é necessário criar, manter e expandir uma cultura de consumo cada vez mais instantânea e automática, estilhaçando nossa capacidade de refletir sobre seus produtos, tornando-nos alvos sempre mais aptos a, simplesmente, aceitar as suas versões da realidade.

O problema, realmente, não é o que acontece.

Mas, afinal, quem sabe o que acontece?

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Estudante de Jornalismo na UniRadial/Estácio de Sá, São Paulo, SP