Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Xenofobia à solta

A tragédia envolvendo o jato Legacy e o Boeing 737 voltou a despertar velhas animosidades pátrias. Do lado brasileiro, o antiamericanismo presente na condenação por antecipação do piloto Joseph Lepore e do co-piloto Jan Paul Paladino. Da parte americana, o temor de que um circo cucaracha esteja sendo armado em torno da dupla para mandá-la à prisão.

Bastou o jornalista do New York Times Joe Sharkey, um dos ocupantes do Legacy, escrever seu relato sobre o que viu e viveu naquele fatídico vôo para receber uma chuva de agressões despejadas por leitores brasileiros no fórum do jornalão americano. Isto porque Sharkey deixou claro que temia pelo destino dos patrícios, possivelmente entregues à própria sorte perante um tribunal formado por índios canibais. Mr. Sharkey foi preconceituoso?

Bancando Tom Wolfe

Esse sentimento de j´accuse que se instalou no Brasil não faz bem a ninguém, embora se compreenda o clima de consternação pelos 154 mortos no desastre. Porém cai muito mal quando se percebe que a iniciativa em acusar parte de quem jamais deveria usar essa prerrogativa: a mídia. Afinal, uma investigação oficial ainda está em curso, apesar das evidências de erro humano.

Algumas matérias publicadas na imprensa brasileira beiram o descalabro, de tão óbvio o afã tupiniquim em explorar o sensacionalismo e vender a idéia de que chegou primeiro à resposta. Caso da revista IstoÉ e sua reportagem de capa sob título ‘A verdadeira história do vôo 1907’. Já seria por demais pretensioso e apelativo, não fosse pela chamada logo abaixo: ‘Dois jovens pilotos americanos. Uma aeronave nova. Um vôo sobre a Amazônia numa tarde ensolarada. Eles pensaram que podiam fazer tudo. E deu-se a tragédia’.

O título em si já é revelador da intenção da revista, ao pretender se antecipar ao processo sobre as causas da colisão. Mais grave é a sentença expressa na afirmação: ‘Eles pensaram que podiam fazer tudo’. Ora, desde quando jornalista é perito em acidentes aéreos? Logo no primeiro parágrafo da matéria, vem esta pérola: ‘Ele e seu co-piloto, o também americano Jan Paul Paladino, 34 anos, piloto desde 1996 com 6.400 horas de vôo, pareciam garotos que acabavam de ganhar um presente novo’. O repórter que assinou a reportagem parece ter desligado o transponder do bom senso e decidido surfar no céu de brigadeiro de suas próprias ilações.

Mas o parágrafo seguinte soa como um definitivo mergulho em parafuso rumo ao achismo:

Tudo indica que os americanos se comportavam como se apenas eles estivessem por ali e procuravam levar ao limite todos os recursos que um jato como aquele pode oferecer. Subidas rápidas, curvas emocionantes. Especialistas acreditam que, para ficar mais à vontade para fazer suas ‘estripulias’ aéreas, os pilotos podem ter desligado o ‘transponder’, equipamento que transmite aos controladores de vôo os dados sobre o avião e sua rota.

Nada porém que se compare a este trecho aqui: ‘No Boeing da Gol, a situação atingiu níveis gradativos de desespero. Cenas de horror eram protagonizadas pelos 154 ocupantes do avião abatido em pleno ar’. Das duas, uma: ou o repórter estava no vôo e conseguiu se ejetar a tempo, ou está querendo bancar o Tom Wolfe, entrando na mente dos personagens, no caso os passageiros do vôo da Gol, conforme rezam os manuais do new journalism. Afinal, Mr. Wolfe fez isto bastante, não é mesmo?, imaginando o que ia pelas mentes daqueles pilotos aloprados em sua reportagem clássica ‘Os eleitos’.

Desvario geral

O pronunciamento de Joe Sharkey provocou uma espécie de bate-boca público entre alguns jornalistas brasileiros sobre quem estaria ou não com a razão. Caso de Carlos Drummond, que escreveu o artigo ‘O faroeste do jornalismo americano’, publicado em Terra Magazine. Drummond anotou: ‘O fato de inexistirem, até aquele momento, conclusões sobre as causas da tragédia não impediu Sharkey de avançar um raciocínio que remete à ideologia do expansionismo americano. Além dos Estados Unidos, reinaria, de acordo com essa visão, o primitivismo. E a única salvação seria a hegemonia ou o domínio desse país’.

Drummond crítica a xenofobia de Joe Sharkey com antiamericanismo. Parece um jogo de soma zero, embora, de fato, para um veterano como Sharkey, talvez o mais prudente teria sido pôr as barbas de molho e aguardar a condução das investigações.

Noutro artigo, na mesma revista, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, embora admitindo nada entender de aviões ou de aviação, rebate Joe Sharkey fazendo uma crítica clara à xenofobia americana: ‘Não se trata de aviões, de radares ou de transponders, mas de percepções e convicções que assolam o imaginário social de uma fração considerável do povo do norte e de seus dirigentes. Vou colocar as palavras na boca de um velho e bom representante do conservadorismo americano, aquele que preza as liberdades civis e os direitos fundamentais, Kevin Phillips’. E cita o conservador Phillips: ‘Há muitos séculos os americanos se consideram especiais, um povo e uma nação escolhidos por Deus para desempenhar um papel único e redentor no mundo. As lideranças eleitas tendem a promover e disseminar este excepcionalismo, sem incluir no discurso as necessárias cautelas históricas.’

Xenofobia ou antiamericanismo à parte, não seria má idéia se repórteres como a da IstoÉ e o do New York Times não tentassem aumentar um ponto nessa história e abrandassem um pouco o desvario. O que vale também para os colunistas de plantão, jornalistas ou não-jornalistas.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias