Quando tratamos de discussões de gênero, temos de, necessariamente, levar em consideração a diversidade de corpos e de expressões das sexualidades que habitam os rótulos de feminino e masculino. Quando começamos esta sequência de contribuições para o Observatório da Imprensa, esta perspectiva se tornou ainda mais primordial: tratar dos desafios de gênero e raça, por meio da comunicação, ressaltando como as temáticas são plurais e as desigualdades enfrentadas pelas atrizes e atores, também. Hoje, com muita alegria, abrimos esse espaço trazendo uma das nuances desse mosaico complexo de representações que se expressam — ou que ainda não se expressam, de forma contundente —, nas pautas dos medias nacionais: a (in)visibilidade das pessoas trans no telejornalismo brasileiro.
Os desafios do reconhecimento e da ocupação de espaços de produção televisiva por corpos trans começam antes mesmo da porta da redação. Estão no dia-a-dia de um país que ainda é o que mais mata pessoas trans no mundo. De acordo com o levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado em janeiro de 2021, do total de casos de trans vítimas de assassinato no Brasil, 29% eram pessoas pretas e 12%, pardas. O estudo chama atenção para o fato de que “todas as vítimas eram pessoas que expressavam o gênero feminino, sendo reconhecidas publicamente enquanto travestis ou mulheres trans”. Além disso, desde que essas verificações começaram a ser feitas, em 2017, mesmo considerando que há subnotificação, o ano passado foi o com mais assassinatos de travestis e mulheres trans: 175, no total; em 2019, o registro foi de 121.
Essa dura realidade se reflete em ausências dos corpos trans em diferentes campos sociais, entre eles, o do jornalismo. Afinal, quantas/os profissionais de TV trans você lembra de ter visto? Quantas/os você conhece? Onde estão? Foi pensando nessas ausências que resolvemos dedicar esta coluna a refletir sobre “onde estão os corpos trans no telejornalismo brasileiro?”. Nossa jornada começou pelo trabalho de Allan Montalvão, jornalista, gay, formado pela Universidade de Brasília (UnB), em dezembro de 2020. Ao longo da graduação, sempre buscou trabalhar com a temática LGBTQIA+, seja fazendo matéria sobre o ambulatório trans no Hospital Universitário de Brasília (HUB), sobre a implementação da Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP), no Sistema Único de Saúde (SUS), seja criando uma revista a respeito do tema. Assim, chegar ao momento do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), trabalhando uma questão também ligada a essa temática, era dar continuidade a uma trajetória que tinha se iniciado quatro anos antes.
Montalvão queria compreender as dificuldades que o esperavam enquanto gay no mercado de trabalho jornalístico e, sob orientação da professora Letícia Renault, apresentou, em forma de vídeo, seu TCC, intitulado “Sem Sinal – Uma grande reportagem sobre o mercado de trabalho de telejornalismo para pessoas LGBTQIA+”. Mal sabia ele que as dificuldades que procurou investigar se materializariam no dia de sua defesa: a transmissão online da banca foi alvo de ataque lgbtfóbico, fato que compôs mais um capítulo triste e hediondo da emergência de forças conservadoras em nossa sociedade, contrárias ao pensamento crítico e à reflexão acadêmica, próprios da universidade. O então discente não se intimidou: continuou a sessão de defesa de sua pesquisa e, como mais um ato de resistência, saiu de lá com sua aprovação.
O trabalho traz questões como: “Quantos repórteres e apresentadores de programa que você acompanha você sabe que são LGBTQIA+?Quantos desses você acredita que têm total liberdade para falar sobre, sem sofrer algum tipo de retaliação? Quantos transexuais, transgêneros ou travestis você já viu na apresentação ou reportagem de um jornal de TV?”. Para respondê-las, Montalvão entrevistou jornalistas que atuam à frente e atrás das câmeras. O vídeo é encerrado com uma questão incômoda: “O que fazer para alcançar a tão almejada mudança?”.
Entre as diferentes respostas possíveis, este texto é uma delas. Instigadas por essa reflexão, como jornalistas e pesquisadoras, mas também como mulheres cisgênero, resolvemos fazer esta coluna sobre a temática da (in)visibilidade trans no telejornalismo brasileiro e, mais ainda, abrir esse espaço para o diálogo com outras vozes. Assim, cara leitora, caro leitor, quem, daqui em diante, contará essa história para você será Allan Montalvão, Alana Rocha e Lisa Gomes, duas repórteres trans com experiência em televisão, que gentilmente aceitaram o convite de nos conceder entrevistas, reproduzidas abaixo.
Alana Rocha foi a primeira mulher trans contratada para ser repórter na TV Aratu, afiliada do SBT, na Bahia, e atuou no jornalismo policial. Atualmente, é repórter e CEO da TV Verdade e do Blog Hora da Verdade, em Riachão do Jacuípe, região metropolitana de Feira de Santana (BA). Lisa Gomes é repórter na RedeTV!, na área de jornalismo de celebridades, integrante a equipe de programas como a “A tarde é sua” e “TV Fama”. Sua entrada no telejornalismo se deu por um projeto que ela mesma propôs e foi aceito pela emissora: a “Web Drag Repórter”. Em suas entrevistas, Allan, Alana e Lisa falam sobre oportunidades, mas também sobre os desafios para pessoas trans no telejornalismo brasileiro.
“Eu acredito que é importantíssimo ter pesquisas ligadas ao tema, em qualquer âmbito. Desde o IBGE pesquisando o real número de pessoas LGBTQIA+ no país até, por exemplo, a FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas) pesquisando quantos jornalistas no mercado de trabalho são LGBTQIA+, onde estão estes profissionais, se isso impactou de alguma forma a carreira deles etc”. (Allan Montalvão)
Observatório da Imprensa: Qual é a sua percepção do mercado de trabalho como jornalista recém-formado e LGBT?
Allan Montalvão: Não posso dizer que já consegui diversas oportunidades após a formatura e tenho várias experiências, mas, baseado nas minhas entrevistas do TCC e na minha própria vivência, eu vejo o mercado como um mercado em mudança. É um mercado que está sendo aberto a cada dia; por novas pessoas, novos corpos, novas identidades, novas vivências. Ainda não é perfeito, está longe de ser, mas a mudança já começou (e não voltaremos atrás).
OI: Você acredita que as pessoas LGBTQIA+ passam pelas mesmas dificuldades de acesso a espaços? Ou há grupos, como as pessoas trans, que encontram mais/diferentes barreiras?
AM: Pessoas LGB [lésbicas, gays e bissexuais] não passam pelas mesmas dificuldades de acesso que pessoas T [trans]. E essa é uma realidade muito fácil de ser comprovada. Pessoas trans têm menos acesso a empregos formais. Pessoas trans morrem mais. A expectativa de vida de pessoas trans é menor. Se cada pessoa — mesmo LGBs — se questionar quantas pessoas trans conhece e, mais ainda, questionar se essa pessoa [trans] tem as mesmas facilidades de acesso que todos nós, todos vão perceber que é um número mínimo, quase inexistente. Infelizmente, ainda vivemos numa sociedade que valoriza o cisgênero e corpos que se diferem disso não são aceitos. Uma comprovação que tive com o meu TCC foi essa: nenhum mercado está aberto a essas pessoas e quando ‘está’ ainda se faz valer do quesito de passabilidade (o quão essa pessoa trans consegue ‘se passar’ por uma pessoa cisgênera). Falta muito para que pessoas trans ‘sofram apenas’ o que gays, lésbicas e bissexuais sofrem. Não é uma disputa, mas é um fato.
OI: Repetindo a pergunta que você fez ao final do vídeo para os entrevistados, “como alcançar a tão almejada mudança?”.
AM: Acredito muito que a mudança vem do incômodo. Hoje, sou eu incomodado com essa realidade. Amanhã, é uma pessoa que possa ter visto meu TCC e começou a se questionar e aplicar essa problemática na sua área. E assim vai. Mudanças são feitas do incômodo com a constância/manutenção de certas coisas. Sendo assim, precisamos nos incomodar, entender o problema, buscar as soluções e só aí alcançaremos a mudança.
“A mudança está dentro de nós! Mas como posso mudar se o outro não permite que eu mude? Eu preciso de apoio ou até mesmo enxergar onde estou errando para seguir no caminho certo. […] A comunidade trans precisa de apoio, precisa se sentir abraçada e respeitada, nosso lugar de fala é muito importante, somos inteligentes, guerreiras, divertidas, objetivas e fortes! Enfrentar o preconceito é só para os fortes de alma!”. (Lisa Gomes)
OI: Como pessoa trans, você considera que esse fato foi um obstáculo para sua carreira, em especial, na televisão?
Lisa Gomes: Digo que entrei pela porta da frente da emissora com todo orgulho, responsabilidade e representatividade. Tive e ainda tenho muitos obstáculos a enfrentar. Aliás, a comunidade LGBTQ+ enfrenta isso todos os dias. Especificamente na RedeTV!, nunca foi completamente difícil pra mim, a emissora me abraçou e foi muito importante na minha transição, mas claro que nada foi tão fácil como parece, briguei todos os dias por espaço no jornalismo de celebridades, que é tão abrangente. Continuei fazendo matérias divertidas e também mostrei e provei que sei fazer coberturas de importantes assuntos. Até chegar aí, foi uma luta muito grande!
OI: Como você percebe a abertura do telejornalismo brasileiro para pessoas trans?
LG: Zero! Completamente ridículo não colocarem uma transexual numa bancada de um jornal ou até mesmo nas equipes, seja como repórter, apresentadora, produtora, diretora e etc. Eu tenho esse desejo e sonho um dia poder sentar numa bancada de um jornal ou, até mesmo, apresentar um programa de entretenimento. Torço, inclusive, que as emissoras abram suas cabeças e pensem nisso o mais rápido possível, e faço um alerta para a comunidade trans, que precisa se especializar e procurar não se anular, tem que correr atrás.
OI: Como você avalia a atuação de entidades de classe em relação aos espaços para pessoas trans no jornalismo? Acha que poderia ser feito mais? Conhece iniciativas de apoio às/aos profissionais trans?
LG: Existem inúmeras iniciativas, várias entidades que dão apoio, mas não é o suficiente. Temos muitas transexuais em situações de vulnerabilidade, precisando de um rumo na vida, meninas que não aguentam mais irem para as ruas venderem seus corpos e terem esse único meio de sobrevivência porque o mercado de trabalho não abre espaço pra elas. É preciso que políticas públicas sejam aprovadas mais rapidamente e, assim, se possa fornecer apoio a essas meninas e meninos trans.
OI: Você sofreu algum tipo de violência/assédio (no âmbito profissional, na redação ou fora dela) por ser uma pessoa trans? Se sim, poderia nos contar o que ocorreu?
LG: Já escutei gracinhas e digo que aprendi a colocar limites. Dessa maneira, fica mais fácil a convivência e as pessoas enxergam você de outra forma. Já fui uma pessoa muito despreocupada com isso, hoje não deixo passar batido nenhum tipo de assédio, seja sexual ou moral.
“Cresci assistindo [ao programa] Aqui Agora (SBT), [ao repórter policial e apresentador] Marcelo Resende, ao extinto Você Decide. [A apresentadora] Márcia Goldschmidt sempre me inspirou, assim como Datena, Geraldo Luiz, Cristina Rocha, e não posso deixar de citar José Eduardo (Bocão), apresentador da Record TV Itapoan, aqui da Bahia, e minha musa nordestina Renata Alves”. (Alana Rocha)
OI: Como você percebe a abertura do telejornalismo brasileiro para pessoas trans?
Alana Rocha: Infelizmente, ainda muito pouco, tanto no quesito de contratação, até porque não há no mercado, de fato, muitas pessoas trans jornalistas, mas, por outro lado, temos também a maneira de lidar dos jornalistas quando a reportagem ou matéria se refere a pessoas trans, que, algumas vezes, são tratadas ou tratados de forma errada no tocante a seu gênero e como se sentem perante à sociedade. Isso também é um reflexo das dificuldades de acesso que pessoas trans têm ao ensino superior, que desmotiva a busca por uma graduação ou profissionalização.
OI: Você sofreu algum tipo de violência/assédio (no âmbito profissional, na redação ou fora dela) por ser uma pessoa trans? Se sim, poderia nos contar o que ocorreu?
AR: Não, nunca houve, inclusive costumo dizer que sou a “exceção da regra”, mas infelizmente a realidade de muitas e muitos trans não é essa. Hoje sabemos que grande parte das pessoas trans sofrem bastante assédio moral e preconceito, principalmente no que se refere à profissão e às oportunidades de trabalho.
OI: Como você avalia a atuação de entidades de classe em relação aos espaços para pessoas trans no jornalismo?
AR: Eu acredito que ainda falta muito para termos o devido respeito e espaço, principalmente no jornalismo. Precisa-se abrir mais espaços, como cursos profissionalizantes ou cotas específicas para pessoas trans. Eu acredito que isso motivaria esse nicho a buscar esses espaços, sem se preocupar em serem destratadas, pois estariam entre os seus. Espero que um dia isso seja uma realidade e possamos ver ainda mais pessoas trans se profissionalizarem e terem a dignidade de um emprego, de serem profissionais em diversos segmentos, inclusive no jornalismo.
OI: Repetindo a pergunta feita ao final do vídeo de Allan Montalvão, “como alcançar a tão almejada mudança?”
AR: Nos impondo, ocupando nosso espaço, sem jamais deixar de lutar e tão pouco abaixar a cabeça para o preconceito. A palavra de ordem é IMPOR, erguer a cabeça e dizer ao mundo “ei, eu existo e sou capaz, e não é você nem ninguém que irá me impedir”. Juntas e juntos somos mais fortes.
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Viviane Gonçalves Freitas é jornalista e doutora em Ciência Política (UnB). Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG). É coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica). Tem pesquisas e publicações nas áreas de mídia, política, gênero e raça. Instagram: @vivianegf14
Lucy Oliveira é jornalista e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem estágio de pós-doutorado pela FAPESP no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e, atualmente, desenvolve pesquisa e trabalhos nas áreas de mídia, política, discurso, gênero e representatividade. É vice-coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Compolítica. Instagram: @lucy_olivr