Já faz um tempo que venho pensando e discutindo sobre a importância da diversidade nas redações jornalísticas. Para fazer crítica de mídia — algo que gostamos bastante aqui no objETHOS — é importante entender como o jornalismo funciona, e isso requer que prestemos atenção em quais pessoas são responsáveis por produzir as notícias que são alvos de nossas análises. Ou seja, quem são os e as jornalistas da mídia brasileira.
Infelizmente, ainda é notável a falta de igualdade entre homens e mulheres, e entre pessoas brancas e negras. No mundo todo, a maioria dos ocupantes de cargos de chefia no jornalismo é masculina e branca — o que torna a visão de sociedade dos jornais também predominantemente masculina e branca (além de hétero e de classe média). Esse padrão, seguido desde os primórdios da profissão, contrasta com a predominância numérica de jornalistas mulheres (no Brasil, são 64% delas contra 36% deles (Mick; Lima, 2013)).
Uma das razões para essa disparidade de poder é a divisão sexual do trabalho. Ela é um desafio histórico a ser superado, que remonta às origens do capitalismo (Federici, 2017) e baseia-se na ideia profundamente machista de que funções domésticas e de cuidado são tarefas femininas, o que sobrecarrega as mulheres e as impede de dedicar-se mais ao trabalho remunerado, reforçando a pirâmide da desigualdade social que tem homens brancos no topo e mulheres negras na base. Entre as jornalistas, muitas relatam que precisam optar entre ter uma relação conjugal e a profissão, entre ter filhos ou subir na carreira, enquanto essa escolha não é tão exigida de seus colegas homens.
“O ingresso de mulheres em territórios masculinos está caracterizado pelo alinhamento das mulheres à norma masculina, isto é, pela aproximação das profissionais à disponibilidade permanente e pelo distanciamento das mesmas à sua ‘destinação prioritária’ à esfera doméstica e às atividades de cuidado” (Le Feuvre, 2008 apud Yannoulas, 2013, p.40).
A concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos é outro fator que contribui para a desigualdade entre homens e mulheres no jornalismo. O Media Ownership Monitor [1] levantou que metade dos 50 veículos com maior audiência no país é controlada por apenas cinco famílias: Globo (família Marinho), Bandeirantes (família Saad), Record (família Macedo), RBS (família Sirotsky) e Folha (família Frias). Essas famílias possuem ligações com setores econômicos fortes, como agronegócio, indústria farmacêutica, igrejas, entre outros, o que gera desconfiança no público quanto aos efeitos das intervenções sobre o conteúdo. Conforme explica a pesquisadora Dimalice Nunes (2020), além de familiar e financeirizada, a estrutura dos meios de comunicação é também profundamente patriarcal, o que favorece a manutenção do poder nas mãos de herdeiros homens e impacta em desigualdades de gênero no mundo do trabalho de jornalistas.
Avanços e resistências
Apesar das dificuldades, muitas coisas vêm mudando desde então, e são observadas e analisadas também pelas pesquisas acadêmicas. Paula Rocha (2019) enumerou os efeitos da presença de mulheres no jornalismo, dividindo as transformações entre aquelas que conseguiram romper com as estruturas da divisão sexual do trabalho (efeitos positivos), e as barreiras que ainda são mantidas e naturalizadas, reforçando as desigualdades de gênero (efeitos negativos).
Entre os efeitos positivos estão: maior denúncia das relações de assédio no exercício da profissão e das desigualdades de gênero entre os pares; aumento de pesquisas acadêmicas sobre a cultura profissional, com perspectiva de gênero; ascensão de mulheres brancas aos cargos de chefia intermediária (Bandeira, 2019); crescimento gradativo da presença feminina nas editorias de Política e Economia, antes majoritariamente reservadas ao homens; surgimento de editorias e seções com escopo em gênero e direitos humanos nos jornais (como o cargo de editora de Diversidade na Folha de S.Paulo, por exemplo); surgimento de editorias e seções com escopo em gênero e direitos humanos nos jornais; presença de mulheres afro-brasileiras e brancas em cargos de direção em novos arranjos de mídia, em contraste com a mídia tradicional; e elaboração de protocolos e ações de proteção às profissionais mulheres e em combate às assimetrias de gênero, raça e etnia por entidades e associações representativas da categoria (já falamos sobre isso no objETHOS, aqui).
Já os efeitos negativos, ou obstáculos que ainda se mantém na direção da igualdade de gênero na profissão estão: maior exploração e precarização da mão de obra feminina, resultando em maior expulsão/desistência delas do jornalismo; reconhecimento ainda pequeno em editorias especializadas como esporte e tecnologia; necessidade de provar seu conhecimento e competência profissional por meio de maior escolarização e qualificação profissional; ausência de absorção proporcional pelo mercado de trabalho da oferta de mão de obra feminina egressa dos cursos de graduação; e, por fim, a manutenção dos tetos de vidro como barreiras para ascensão profissional, especialmente às jornalistas mulheres afro-brasileiras.
Em suma: apesar dos vários avanços ocorridos desde a inserção gradual das mulheres na profissão, que ganhou força principalmente após a abertura de cursos superiores em Jornalismo, ainda há muito chão a percorrer na direção da diversidade nas redações. É preciso enfrentar barreiras estruturais do sistema, e os primeiros passos para esse enfrentamento envolvem visibilizar cada vez mais esse tema, incluindo-o nas rodas de conversa sobre a profissão e diagnosticando avanços e desafios. Aumentar o número de mulheres e de pessoas negras em cargos de tomadas de decisão, quebrando os “tetos de vidro” também é importante, embora não seja suficiente. Quem lidera as redações precisa ter também uma visão feminista e antirracista, para possibilitar mudanças mais profundas. Afinal, como dizem Cinzia Arruzza, Tithi Battacharya e Nancy Fraser (2019), “não temos interesse em quebrar o teto de vidro enquanto deixamos que uma ampla maioria limpe os cacos”.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Andressa Kikuti é doutoranda do PPGJOR e pesquisadora do objETHOS.
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Referências
ARRUZZA, Cinzia; BATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
BANDEIRA, Ana Paula B. S. Jornalismo e Feminização da Profissão: um estudo comparativo entre Brasil e Portugal. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, UFPE, 2019. 250 p.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
MICK, Jacques; LIMA, Samuel. Perfil do Jornalista Brasileiro: características demográficas, políticas e do trabalho jornalístico em 2012. Florianópolis: Insular, 2013.
NUNES, Dimalice. Escalada da precariedade: os efeitos das transformações do trabalho na subjetividade das mulheres jornalistas na cidade de São Paulo. Dissertação. Programa de Pós Graduação em Economia Política Mundial. São Bernardo do Campo: UFABC, 2020, 223 p.
ROCHA, Paula Melani. A feminização no jornalismo como uma categoria de análise em construção: transformações no mercado de trabalho, dissimetrias estruturais e conquistas. Monografia para ascensão de classe de professora. Ponta Grossa: UEPG, 2019. YANNOULAS, Silvia Cristina. Trabalhadoras: Análise da Feminização das Profissões e Ocupações. Brasília : Editorial Abaré, 20
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Nota
[1] O estudo é financiado pelo governo alemão e produzido pelo coletivo brasileiro Intervozes e a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RsF), sediada na França. Disponível em: https://brazil.mom-rsf.org/br/.