Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os dilemas do jornalismo aos ataques de Bolsonaro

O jornalismo tradicional – representado pela grande mídia – tem sido exposto a toda sorte de contradições que explicitam os movimentos da história recente do país: do campo semântico que separa a Lava Jato da Vaza Jato à cobertura seletiva de fatos políticos e denúncias, os últimos tempos têm exposto fragilidades de uma prática comprometida e pouco transparente. Agora, quando se aproxima o primeiro ano do governo Bolsonaro, é possível identificar nas coberturas um pêndulo que oscila entre uma boa vontade acrítica em relação às políticas econômicas de Paulo Guedes e a cada vez mais difícil tentativa de normalizar os absurdos diários proferidos pelo presidente e sua entourage.

O resultado é a tendência em criar manobras retóricas para elucidar o atual estado de coisas que carecem de sustentabilidade. O fenômeno é maior entre os comentaristas da TV. No telejornalismo, expressões, olhares, gestos podem completar ou indicar contradição com o sentido das palavras, principalmente quando revelam o desconforto entre discurso e linguagem corporal. Disso deriva, inclusive, a potência da linguagem audiovisual em que não é tão simples alinhar o que se diz ao que se mostra. Mas aparece também na cobertura de veículos de tradição impressa ou nos meios radiofônicos. O jornalismo digital, com sua variedade de tendências, é um caso à parte.

Por isso, a fala do ministro da Economia sobre o AI-5, na semana que passou, teve forte carga simbólica. É como se o ministro, ao deslizar para o campo político, cindisse as narrativas que tentam “blindar” a pauta econômica dos demais assuntos. A máscara caiu, não se sabe se intencionalmente ou por alguma espécie de ato falho. Como os discursos não são apenas as palavras, mas as práticas que instauram, os dispositivos de sustentação da democracia – como o Judiciário, o Congresso, o pensamento crítico vindo das universidades, dos intelectuais – se mobilizam para defender o Estado de Direito. Não não nos esqueçamos que a fala de Guedes se liga a outras tantas da trajetória política de Bolsonaro. Esse contexto nem sempre é lembrado nas abordagens jornalísticas normatizantes do Brasil de 2019.

A semana que passou teve novos ingredientes das doses diárias de sectarismo do grupo que está no poder e eles dizem respeito mais diretamente ao jornalismo. O presidente impediu a participação da Folha de S.Paulo nas licitações para assinatura de jornais nas repartições públicas e os argumentos estão longe do interesse público. “Eu não quero ler a Folha mais. E ponto final. E nenhum ministro meu”, disse na sexta-feira, dia 29.

Na edição impressa de sábado, 30, o editorial da Folha de S.Paulo, “Fantasia de imperador”, foi o mais duro desde o início do governo. “O Palácio do Planalto não é uma extensão da casa na Barra da Tijuca que o presidente mantém no Rio de Janeiro. Nem os seus vizinhos na praça dos Três Poderes são os daquele condomínio”, afirma a Folha, logo após dizer que “será preciso então que as regras do Estado democrático de Direito lhe sejam impingidas de fora para dentro, como os limites que se dão a uma criança”. A manchete da edição de domingo, 1º de dezembro, também demonstrava que o jogo pode mudar daqui para frente. “Falas autoritárias de Bolsonaro geram desconfiança.” A estabilidade jurídica depende do Congresso e do Supremo.

Mas foi a coluna de Jânio de Freitas, na Folha de S.Paulo de domingo, com o sugestivo título de “Liberdade de prensa”, que jogou luz sobre o cenário. O ato contra a Folha caracteriza censura e viola a Constituição, mas não se trata de um ataque isolado.“Há motivo para ver no assédio econômico à Folha um ensaio, talvez já o primeiro capítulo, de um plano para submeter o jornalismo ao projeto antidemocrático que Bolsonaro está implementando”, escreveu. O que está em jogo não é apenas a autonomia do jornalismo, mas o respeito à democracia. “O governo nem disfarça quando recorre a atos arbitrários para tentar silenciar críticos e premiar quem é subserviente, desprezando critérios técnicos e os próprios limites do poder. Hoje, a imprensa está na mira de Bolsonaro. Amanhã pode ser qualquer um que o contrariar”, acrescentou Bruno Boghossian na mesma edição de domingo da Folha de S.Paulo.

Na segunda-feira, 2 de dezembro, o Secretário de Comunicação da Presidência, Fábio Wajngarten, publicou uma resposta ao editorial na própria Folha de S.Paulo. O título do artigo é “O infame editorial”. Nele, Fábio diz que o jornal paulista se “junta àqueles derrotados nas urnas em outubro passado, aos que tentaram matar o então candidato Jair Bolsonaro, para pregar o desrespeito, a mentira e a tentativa frustrada de desmoralizá-lo no cargo mais graduado da república.” O secretário defendeu a liberdade de expressão e considerou “leviano, infame e injusto” o editorial da Folha. A resposta, na medida em que usa o espaço institucional do jornalismo para o debate, assinala algo que esteve em falta em 2019 por parte do governo, cuja postura seletiva em atos e discursos buscou desqualificar o jornalismo profissional. A subida de tom da Folha parece ter mudado, ao menos nesse episódio, a estratégia do governo.

No início de 2019, nos perguntávamos como seria a relação da imprensa com o governo Bolsonaro. A essa altura, já é possível perceber que as previsões mais realistas se concretizaram. Como indica Jânio de Freitas, a partir de agora haverá necessidade daqueles que prezam pela sustentação da democracia se posicionarem. Fazer de conta que nada acontece pode ser um erro imperdoável à luz da história.

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Pedro Varoni é jornalista.