Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

House organs de partidos políticos

Acusações feitas a autoridades, jornalistas e instituições do país vêm sendo utilizadas nos últimos tempos em larga escala pelos veículos de comunicação do Brasil. Elas têm preenchido cada vez mais páginas de jornais e revistas, bem como as telas das TVs e espaços da internet, principalmente as redes sociais. Contudo, reportagens sobre o “caso Cachoeira”, o escândalo do “mensalão” e o “caso Gilmar Mendes versus Lula” (temas de fundamental importância para o aperfeiçoamento da democracia brasileira), estão extrapolando o senso do ridículo ao serem produzidas tão somente com o objetivo de servirem a facções político-partidárias claramente identificadas em suas linhas e entrelinhas.

Alguns veículos tradicionais, com suas histórias de superação e produção de bom jornalismo, ao que parece, tornaram-se meros house organs maquiados pelas seções de Ciência e Tecnologia, Esportes, Medicina, Cultura e Entretenimento, entre outras. Tornaram-se assessores obedientes, cada um deles, aos partidos políticos, “clientes” que certamente lhes prometem, caso assumam o poder, futuras e recheadas verbas publicitárias.

Está mais do que explícito que este jogo marqueteiro tem como objetivo principal ofuscar ou ampliar, de acordo com as conveniências de cada lado, notícias a respeito de seus respectivos adversários no momento político. Trata-se, pois, de duas facções movidas pela partidarização política exacerbada, guerreando com armas idênticas em punho.

Consequências desastrosas

A base governista, comandada pelo PT, pautou com apetite feroz o “caso Cachoeira”, muito claramente com o intuito de minimizar a importância do escândalo do “mensalão”, a ser julgado antes das eleições de outubro próximo – pelo menos é o que a sociedade brasileira espera. A oposição, por sua vez, mordida pelo “caso Cachoeira” e sabendo que o “mensalão” tornou-se um dos piores pesadelos já vividos pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pela sua trupe petista, não pretende deixar barato e já começou a pautar o escândalo, tomando como ponto de partida as declarações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que denunciou, na revista Veja (edição 2271), uma suposta pressão de Lula para atrasar o julgamento, deixando-o para depois das eleições.

Esta prática, que há muito vem sendo utilizada pelos veículos de comunicação, principalmente em véspera de eleições, fere um princípio fundamental para a produção de um jornalismo responsável, que é o da imparcialidade e da independência editorial, mesmo que tal princípio muitas vezes permeie apenas a área da pura e ingênua teoria jornalística, mas que profissionais e veículos, em nome da ética, devem sempre tentar alcançar.

Estratégias como estas podem, sim, propiciar o esfriamento de pautas relevantes, ao mesmo tempo em que deixam margem para que cidadãos incautos julguem precipitadamente, e sem conhecimento de causa, personalidades e instituições as mais diversas, podendo destruir carreiras profissionais e empresas – vide o caso da Escola Base, de São Paulo, em 1994 –, para não falar de outras consequências desastrosas.

Respeito pela compreensão

Alguns veículos chegam ao extremo de sequer se dar ao trabalho de ouvir e publicar as versões dos acusados e, com tal procedimento, ferem de morte outro princípio ético que tanto os jornalistas quanto os próprios veículos precisam respeitar: o de “ouvir o outro lado”.

Do jeito como anda, a cada dia que passa o jornalismo nativo se joga por inteiro em um poço sem fundo. Nota-se que ele caminha para um perigoso retrocesso ao comportar-se, grosso modo, como se ainda estivesse vivendo os tempos da ditadura militar, quando, desastrosamente, ficamos reféns da censura e de ações midiáticas geradas a mando do Tio Sam, que só nos permitia ter acesso às notícias por ele determinadas.

Naquela época, resistências foram bravamente comandadas por alguns dos mais importantes e éticos jornalistas e veículos que prezavam, acima de tudo, a liberdade de imprensa, como foi o caso do saudoso Jornal do Brasil, então comandado editorialmente pelo jornalista Alberto Dines – hoje editor responsável por este Observatório da Imprensa. Eles, porém, por motivo de pura sobrevivência, tiveram que engolir em seco os mandos e desmandos dos militares brasileiros capitaneados pelos prepotentes e indigestos americanos.

Por incrível que possa parecer, é notório que tanto os mandantes das estratégias aqui mencionadas, quanto os seus comandados, ainda não se deram conta de que os tempos mudaram. O cidadão, agora melhor informado e sem a pesada vigilância militar para intimidá-lo, não aceita mais métodos manipuladores por muito tempo utilizados pela mídia, e exige, mais do que nunca, respeito quanto ao seu poder de compreensão dos fatos noticiados.

“Manter a atenção distraída”

Este jogo maquiavélico pode vir a comprometer definitivamente a já frágil credibilidade da imprensa brasileira, bem como o jornalismo produzido no rádio, na TV e na internet. Portanto, os profissionais que atuam na área, junto com a sociedade organizada (agora com as redes sociais em suas mãos), devem cobrar dos veículos de comunicação o cumprimento de suas funções jornalísticas, quais sejam as de investigar e noticiar com o maior nível possível de imparcialidade as falcatruas desses agentes que enriquecem à custa do dinheiro público.

Quem sabe, com uma cobrança bem orquestrada por quem deseja informação de qualidade, as estratégias manipuladoras de opinião comecem a ser extirpadas dos veículos brasileiros – nada é impossível quando se acredita em uma causa justa.

Enquanto parte da mídia brasileira atua como sendo uma grande assessoria de comunicação a serviço de “clientes” inescrupulosos, o pacato cidadão, que vive na pobreza ou abaixo de sua linha, sem acesso aos jornais, revistas e internet, sofre na carne os desmandos cometidos pelo poder público em todas as áreas de sua vida de brasileiro.

Para estes eleitores marginalizados, porém, os donos do poder, certamente assessorados por marqueteiros especializados, utilizam uma das dez estratégias midiáticas apontadas por Noam Chomsky, filósofo americano reconhecido mundialmente pela comunidade científica e acadêmica por seus importantes trabalhos em teoria linguística e ciência cognitiva, que é a de “manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real”.

Violência, saúde, educação e seca

Baseados nesta estratégia, assuntos relevantes são praticamente negligenciados e dão lugar aos espetáculos produzidos pelo “Gran Circo Brasil”. Senão vejamos:

** Diariamente a violência dizima centenas de pessoas nas cidades e no campo, e traficantes e milícias continuam dando as ordens nas comunidades de baixa (ou nenhuma) renda. O povo obedece aos bandidos e a polícia parece não possuir meios de proteger famílias inteiras quando mais necessitam.

** Os hospitais são um antro de infecções por todo o Brasil. Crianças e idosos morrem aos montes nas enfermarias. Faltam remédios, macas, médicos, respeito. Pessoas penam nos corredores esperando atendimento e morrem esperando.

** A educação no país continua sendo tratada como prioridade nos discursos eleitoreiros, mas o que se constata não condiz com a cruel realidade. Professores atuantes em todos os níveis escolares precisam se submeter aos salários humilhantes pagos pelos governos das três esferas, e muitos não conseguem sequer o direito de se aperfeiçoarem por falta de recursos financeiros. Faltam salas de aula minimamente equipadas e toda a estrutura que possibilite implantar ações afirmativas que atendam eficazmente os filhos da pobreza.

** Estamos à beira de sofrer os rescaldos da crise financeira da zona do euro e a seca do Nordeste, até hoje sem solução por falta de vontade política, desde sempre maltrata o povo desesperançado – só no estado da Bahia aestiagem afeta mais de 2,7 milhões de pessoas e já levou 239 municípios a decretar situação de emergência.

A mídia conforme as conveniências

Ao mesmo tempo, maliciosamente, uma gama imensa de propaganda eleitoral gratuita, e outras tantas pagas com o dinheiro público, veicula imagens oníricas como forma de anestesiar a mente do cidadão que sofre com as condições sub-humanas em que vive.

Notícias sobre transações milionárias envolvendo nossos craques da bola são evidenciadas a fim de reforçar a teoria de que somos a maior força do futebol no planeta. Big brothers da vida, símbolos do puro mau gosto televisivo, ocupam horários nobres das emissoras, emporcalhando o imaginário popular com cenas de pornochanchadas de baixíssimo nível. E o cidadão, movido pelas artimanhas do poder, agradece todos os sábados e domingos por compartilhar das ações “filantrópicas” comandadas por Gugu Liberato, Luciano Huck e o falastrão do Faustão, na esperança de que, em algum momento de sua existência, seja ele o agraciado.

Em suma,os poderes políticos, sejam eles governistas ou oposicionistas, vergonhosamente se utilizam da mídia conforme suas conveniências, principalmente em véspera de eleições, com o objetivo de levar o povo a lembrar ou esquecer de suas mazelas, de mostrar ou esconder fatos importantes, de colocar ódio ou amor no coração dos incautos com textos e imagens as mais tenebrosas ou comoventes. E, neste “jogo de empurra”, tudo vale, até mesmo apelar para o Ratinho, apresentador de um programa popularesco, de qualidade duvidosa e extremamente alienante, como fez o ex-presidente Lula. Afinal, pobre também vota.

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[João Dell’Aglio é jornalista, Salvador, BA]