Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O rigor da checagem e a difícil prática do jornalismo

Qualquer cidadão munido de um celular pode ser jornalista? Os celulares hoje até servem como telefone, mas a “portabilidade” desses meios digitais os transformou em um verdadeiro equipamento de criação de notícias: o usuário pode tirar fotos de um acidente ou assalto, escrever um texto, postar num blog, enviar para as redações de emissoras de rádio. De fato, muitas das estações de serviço (me refiro aos meios radiofônicos) fazem cobertura ao vivo do trânsito com o material recebido desses “jornalistas cidadãos” ou ouvintes participativos. Mas nem tudo é tão simples.

Em 2007, o doutor Denis Ruelan, professor da Universidade de Rennes, na França, esteve em visita à Cásper Líbero e falou numa mesa de debates sobre “O Jornalista na sociedade contemporânea: Brasil-França”. Estávamos em uma temporada de preparação para a comemoração do ano da França no Brasil (2009), do mesmo modo que 2005 fora o ano do Brasil na França. E o professor Ruelan vinha defender a tese de que qualquer cidadão preparado, munido de um celular, poderia ser um inventivo jornalista.

Como coordenador de ensino de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero naquele período, fui convidado para debater com o professor Ruelan. Não foi tarefa das mais agradáveis. Lembro de sua irritação com minha postura radicalmente contrária a essa formulação tão simplista. E o STF ainda não havia decretado a não obrigatoriedade do diploma para a prática do jornalismo, nem isso motivava a postura contrária.

Poucas linhas

O exercício da profissão vai muito além de captar uma notícia no ar e repassá-la de imediato. Com certa frequência se pode constatar que uma emissora de rádio, abastecida pelas informações enviadas pelo ouvinte, noticia que determinado corredor da cidade, como pode ser o Elevado Costa e Silva, em São Paulo, está completamente congestionado. E o motorista que segue pelo mesmo Minhocão ouvindo a informação em seu rádio se surpreende ao constatar o trânsito fluindo normalmente. Afinal, um pequeno acidente ou engarrafamento muitas vezes se desfaz em questão minutos. Faltou a informação da hora exata em que o congestionamento acontecia.

Essa reflexão veio após a leitura, na terça-feira (4/12), do “erramos” publicado pelo jornalista Ricardo Setti. Escreveu ele: “Amigas e amigos do blog, não tenho compromisso com o erro, e nem medo de pedir desculpas. Então, queria dizer que a suposta foto que até há alguns minutos ilustrava o post sobre o ‘Caso Rose’ que publiquei hoje, mostrando Lula supostamente abraçado a Rosemary Noronha, de um lado, e a dona Marisa Letícia, de outro, é na verdade uma montagem. Foi feita a partir de foto do Carnaval de 2009, no Sambódromo. Na foto, realmente Lula abraça dona Marisa e outra mulher, na verdade a esposa do cantor Neguinho da Beija-Flor, Eliane Reis. Neguinho aparece na foto original, abraçado a Lula e a dona Marisa, mas foi eliminado na montagem.”

Jornalista conhecido pelo preciosismo de seus textos, Setti comete repetições (“suposta foto”; “supostamente abraçado” / “na verdade uma montagem”; “na verdade a esposa do cantor”) num trecho de poucas linhas. Para um Prêmio Esso, não deve ter sido fácil o episódio. Como tampouco deve ter sido para outro ícone do jornalismo nacional, Ricardo Noblat, a veiculação da notícia sobre a brasileira atacada por neonazistas na Suíça.

Rastilho de pólvora

Num post enviado em 11 de fevereiro de 2009, às 15h52m, como ainda consta de seu acervo (Setti aparentemente removeu a imagem e a notícia, e se refere a que a legenda dizia explicitamente tratar-se de uma montagem, algo que o pesquisador não pode conferir), Noblat contava, em 2.779 caracteres, a história da advogada Paula Oliveira, de 26 anos, funcionária da empresa dinamarquesa A P Moeller/Maersk, líder em transporte marítimo de contêineres. Grávida de gêmeas havia três meses, Paula abortara ao ser atacada por três skindheads neonazistas. Dois dos agressores a imobilizaram, deixando-a seminua, enquanto o terceiro retalhava diversas partes do corpo da advogada. O ato final da sessão de tortura, no detalhado relato, foi entalhar nas duas coxas de Paula a sigla SVP- Schweiz Volks Partei. Em português, Partido Popular da Suíça ou Partido do Povo Suíço.

Noblat relatava o depoimento do pai da moça: “‘O que fizeram com minha filha parece uma história de filme de terror’, disse-me o advogado Paulo Oliveira, secretário parlamentar do deputado federal Roberto Magalhães (DEM-PE), ex-governador de Pernambuco. Oliveira embarcou ontem, às pressas, para Zurique. Ele foi acordado por um telefonema da filha às 4h da segunda-feira. Paula lhe contou o que acontecera.”

Aparentemente, o pai e o jornalista, todo mundo comprou a versão da moça. E a notícia se espalhou feito um rastilho de pólvora. Lembro do rápido pronunciamento do presidente Lula e do Itamaraty reclamando junto ao governo da Suíça. Jornais portugueses, como O Público, deram editorial contra o xenofobismo suíço, associando o caso ao de patrícios vítimas de preconceito na terra do relógio.

Punhalada pelas costas

O dia 11 de fevereiro de 2009 foi uma quarta-feira. Dois dias depois, segundo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo: “O diretor do Instituto de Medicina Forense da Universidade de Zurique, Walter Bär, afirmou nesta sexta-feira que, a partir de exames de legistas e ginecologistas, sua conclusão é de que a brasileira Paula Oliveira não estava grávida e teria ela mesma feito os ferimentos em seu corpo. Em entrevista coletiva na sede da polícia de Zurique, Bär afirmou que os corte encontrados no corpo dela foram realizados em locais que podem ser alcançados por ela mesma.” (Novamente temos um texto com repetições, no caso o sofrível “ela mesma”.)

O calor da imprensa online provoca isso. A cada meia hora o blogueiro posta uma nova notícia. No calor da hora, mata-se a vítima antes de o fato haver ocorrido, como aconteceu no caso da adolescente Eloá Cristina Pereira Pimentel, sequestrada pelo namorado Lindemberg Alves no dia 13 de outubro de 2008. Eloá Pimentel morreu dia 18, mas seu falecimento foi noticiado como “furo” na véspera pela TV Globo.

Mas o trabalho do jornalista é mesmo outro. É o de costurar, checar, confirmar. Um trabalho duro sem o glamour das festas do estimado colega Amauri Júnior. Há algumas semanas, um leitor postava uma crítica sobre a menção feita nesta página ao currículo do ministro Lewandowski. O autor dizia que este colunista errara ao não checar os dados — a data da graduação em Direito do ministro é a que consta de seu currículo publicado no site do STF e devidamente checado. Há checagem constante, e esse é o diferencial do jornalista no exercício profissional. Ao contrário do que quer, ou queria, o professor Denis Ruelan, entusiasta do jornalismo participativo da Universidade de Rennes. O domínio das tecnologias digitais não transforma ninguém em um profissional da imprensa. Pois como se viu, mesmo os grandes ícones do jornalismo caem em ciladas.

Quanto à senhora vítima da montagem publicada por Setti, Rosemary Nóva de Noronha (não há como não associá-la com a tresloucada Carlota Corday, que assassinou o revolucionário Jean-Paul Marat em 1793 com uma punhalada certeira no coração — agora a punhalada foi pelas costas, e o rapaz tem costas quentes), o tão apunhalado camarada Luiz Inácio Lula da Silva e o colega já citado Amauri Júnior, deixemo-los de molho para a próxima série sobre “As más companhias”, que se estenderá por alguns emocionantes capítulos. Até a próxima semana.

***

[Carlos Costa é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates]