Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mais tempo, mais espaço

A reforma gráfica mais recente da Folha de S.Paulo, em 2010, aumentou a inquietação profissional de Claudia Antunes, que havia sido editora de Internacional, na sede, e então era repórter na sucursal do Rio de Janeiro. O novo desenho foi apresentado em vídeo publicitário por Fernanda Torres, que fazia uma espécie de defesa prévia: “As letras e fotos ficaram maiores, porque às vezes o Brasil todo precisa enxergar melhor. Os textos estão concisos, os parágrafos, concisos, mas o pensamento, não”.

O que andava incomodando Claudia era o que ela chama “limitação ortodoxa do tamanho”. Um agravante do ritmo industrial de produção do matutino. A Folha tem dois fechamentos (conclusão da edição): oito da noite tem que ficar pronta a edição nacional, aquela que, depois de passar pelas rotativas, vai pegar embarques para diferentes pontos do país. E a edição SP/DF, três horas depois, idealmente.

Prazo curto e espaço restrito nunca impediram boas edições jornalísticas. A capacidade de síntese é diretamente proporcional ao domínio do assunto. A rapidez depende da perícia de quem resume e qualifica as informações.

Não foi uma dissonância conceptual que levou Claudia da Folha para apiauí, diz ela em entrevista ao Observatório da Imprensa:

– Quando deixei de ser editora de Internacional e voltei para o Rio, eu estava hiperestressada. Estava na ponte aérea há muito tempo e ficando cansada.

Trabalho meticuloso

Não foi, nem deixou de ser.

– Mas sempre fui um pouco obcecada com a apuração, com a exatidão, as nuances das matérias. Para pessoas como eu, e não só eu, foi um pouco um baque a última reforma que a Folha fez – conta.

Dois anos depois, ela estava na piauí, com o título de editora.

– Formalmente, editora. Mas no sentido de que ajudo o Fernando de Barros e Silva, diretor de Redação, e o João Moreira Salles [o publisher] a editar as matérias – esclarece.

João Moreira Salles também faz reportagens. Muitas. No número 1 da revista (outubro de 2006), ouviu do grande gogó do mensalão, Roberto Jefferson, uma definição de Renan Calheiros. “Não busque em Renan solidariedade; busque negócios: tratou, ele cumpre.”

Claudia revê textos e traduções, além de eventualmente fazer reportagens.

– É um trabalho muito mais meticuloso do que no jornal – avalia. – E tem que ser assim mesmo, porque a produção é mensal. As matérias voltam para o repórter até o texto ficar satisfatório. Isso pode acontecer duas, três vezes. Em média, uma reportagem é apurada em dois meses, escrita em uma semana, editada em mais uma.

Na reportagem “Mares nunca dantes navegados. A trajetória de Dilma Rousseff da prisão ao poder – e como ela se tornou a candidata do presidente Lula à sua sucessão”, publicada em julho de 2009, Luiz Maklouf Carvalho informa que passou quatro meses apurando e entrevistou setenta pessoas.

Prática muito distante da apuração a jato, em conversas telefônicas ou “conversas” eletrônicas com duas fontes (e olhe lá), trinta minutos para redigir, quinze para editar: rotina cotidiana da qual dificilmente se escapa num grande jornal.

O vício do bombástico

Claudia faz um raciocínio que merece a atenção de editores de diários. A exiguidade de tempo e espaço, e a busca de um lide bombástico, criam deformações no trabalho do repórter. “Ele fica viciado nisso”. Pode estar aí uma das explicações para o empobrecimento de conteúdos jornalísticos que deveriam, ao contrário, ser cada vez mais valorizados.

– O repórter, quando acha que encontrou a declaração ou o número que vai dar o lide bombástico, pára de apurar. Criou-se uma péssima mania: “Ah, gente, eu vou fazer trinta centímetros. Para que eu vou ficar apurando mais?” Ele pára, porque se começar a mexer demais naquele assunto e encontrar alguma nuance que questione o que ele já apurou e lhe deu o lide bombástico, sabe que a matéria não vai entrar – diz Claudia.

Ponto para a piauí:

– A revista não tem a obrigação de fazer uma coisa bombástica, pode-se publicar tanto o que vai causar mais impacto como aquilo que vai relativizar o impacto – elogia a jornalista, fã da publicação, que colecionou sem perder um número desde seu lançamento.

A apuração mecânica rouba do jornalista “a emoção do envolvimento com um assunto novo, ficar dias pensando naquele negócio”.

Claudia volta à defesa da qualidade.

– Eu sempre defendi a ideia de que ninguém, na verdade, lê o jornal inteiro. Só jornalista. Normalmente o leitor lê as matérias que interessam. Então, se lhe interessa, não é legal dar ao leitor uma coisa completa? – argumenta.

Participar do esforço pela qualidade significa, para os repórteres, aceitar que seus textos lhes sejam devolvidos duas, três vezes, até ficarem satisfatórios. Com tudo isso, ou por isso mesmo, “trabalhar na piauí é até o sonho de muitos jornalistas hoje em dia”, diz Claudia, que ainda se considera novata e insiste que não tem autoridade para falar em nome da revista.

Estagiária pesquisadora

A trajetória de Claudia Antunes começou ainda nos tempos de faculdade – a Escola de Comunicação da UFRJ –, quando fazia, com outros estudantes, um boletim pastoral da Arquidiocese da igreja católica no Rio de Janeiro. No ano em que se formou, 1982, começou a estagiar na Internacional do Jornal do Brasil, onde então trabalhavam, chefiados por Jorge Pontual, Regina Zappa, Raul Riff e Mauro Silveira (ambos falecidos), entre outros.

– Eu fazia muita pesquisa, em papel, claro, um trabalho de apoio muito diferente do que se faz hoje pela internet – diz Claudia, que em 1984 foi trabalhar na TV Manchete. Dois anos depois, Ruth de Aquino se tornou editora da Internacional do JB e a convidou a voltar. Foi redatora e subeditora. Durante um período, que coincidiu com o governo Collor, trabalhou na Política. Em 1995, tornou-se editora da Internacional. Ficou no JB até 1999.

– O jornal estava atrasando os salários havia bastante tempo – conta. – Quando voltei da cobertura do encontro da OMC em Seattle, Marcelo Beraba me chamou para trabalhar na sucursal da Folha de S.Paulo. Foi uma experiência completamente diferente da que eu tivera até então. Eu nunca tinha feito cobertura de cidade e passei a chefe de reportagem. Foi preciso me habituar com uma variedade de assuntos que podia ir de um sequestro de ônibus (da linha 174, em 2000) à cobertura de economia. Um grande aprendizado.

Entre 2005 e 2006, Claudia frequentou cursos de política internacional e teoria política em Harvard, graças a uma bolsa da Nieman Foundation. Ao voltar, aceitou convite para ser editora de Internacional da Folha, em São Paulo. Ficou nessa função até 2009, quando voltou para a sucursal do Rio como repórter especial. No ano seguinte, esbarrou numa das periódicas reformas que a Folha faz.

Dados e nuances

Na piauí, Claudia pode dar vazão a uma obsessão com a qualidade da apuração.

– Você poder fazer matérias que realmente… não vou dizer que esgotem o assunto, porque, por incrível que pareça, às vezes você faz uma matéria de 40 mil caracteres e não esgota o assunto – diz Claudia. – Você pode escrever sem a obrigação de dar um furo, embora muitas matérias contenham furos importantes. Você pode se preocupar com a exatidão dos dados e com as nuances, não vou falar nem das versões, mas das nuances de um acontecimento, de uma situação, coisas que no jornal ficam para trás, mesmo. E cada vez mais.

A jornalista evita as generalizações, sempre perigosas.

– Claro que há exceções, os jornais procuram ter seus cadernos de fim de semana. O Estadão tem o “Aliás”, gosto dele. A Folha tem a “Ilustríssima”, que é outra proposta. Mas no geral prevalece muito a ideia de que o leitor não tem tempo, de que todo mundo quer ler o jornal em meia hora. Não estou falando que no dia a dia todas as matérias têm que ser enormes. Para mim, um dos melhores jornais do mundo é o Financial Times. As matérias, embora sejam na média maiores do que as dos jornais brasileiros, não são enormes. Elas trazem a informação, o contexto e a análise. Deixam coisas de fora. Por exemplo, não dão todo o declaratório da autoridade. Escolhem uma frase que seja representativa, e basta.

Claudia diz que na piauí todo o esforço da – pequena – redação é para que os textos, mesmo os longos, sejam claros.

– A orientação que recebi quando vim trabalhar aqui, em julho de 2012, é que a revista não quer ter nem uma linguagem nem um espírito empolados – relata.

Ousadia que vingou

A jornalista insiste em não ser vista como porta-voz, porque não participou da criação da revista, cinco anos antes de sua chegada, mas esboça uma avaliação da importância da piauí no contexto da mídia jornalística do país.

– O fato de ela ter lançado um paradigma que estava ausente naquele momento da imprensa brasileira foi uma ousadia que vingou – analisa. – A revista conseguiu fazer leitores fieis e manter a qualidade. A ideia da revista, acho, é retomar justamente o jornalismo mais aprofundado, e sem a pretensão de trazer lições, ou de consagrar uma posição ou outra, mas sempre de buscar um aprofundamento.

Claudia destaca uma característica da revista que atribui à participação de João Moreira Salles: o bom humor, “no sentido de dar um respiro ao leitor. Não pretende ser só uma revista que trate seriamente de assuntos mais ou menos sérios (no sentido de pesados). Pode também fazer grandes matérias sobre assuntos que não sejam sérios.”

Segundo Claudia, o site da revista, com seu blogue The i-Piauí Herald, contribui para atrair leitores. Ele é editado por Renato Terra, que faz na revista o impagável “Diário da Dilma”. Na segunda-feira (11/2), algumas de suas inspiradas gaiatices eram: “Carnaval em Brasília será interrompido até dia 19”, “Mídia defende controle social de José Dirceu”, “Dilma distribui abadás para a base aliada”.

Estímulo filial

Quando anunciou em casa que ia trabalhar na piauí, a jornalista ficou feliz com a reação de seus dois filhos, de 22 e 19 anos.

– Eles adoraram. Conheciam a revista, apesar de não lerem de maneira sistemática jornais diários, porque veem notícias na internet. O jornaleiro da banca que frequento também vibrou – conta a jornalista.

São estímulos adicionais para quem segue a ética profissional do trabalho exaustivo, em busca da relevância e balizada por um senso de responsabilidade que o espírito brincalhão das redações menos azedas às vezes disfarça.

Em sua mais recente reportagem, título forte da capa da edição de janeiro – “Peleja olímpica. Claudia Antunes acompanha a disputa entre o morro e o Estado na grande obra do Rio” –, ela vira e revira o objeto, põe em cena os principais atores de um processo cujo núcleo é o Morro da Providência, berço de todas as favelas, símbolo indisputável das relações sociais na cidade.