Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Festa para o estádio; bebês morrem em hospital público

Uma obra (segundo os últimos números) de nada menos do que R$ 1,5 bilhão, quantia paga exclusivamente com dinheiro público. A reconstrução do Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha, por parte do governo do Distrito Federal, é considerada polêmica nas rodas de conversa em toda a capital e nas mídias sociais. Principalmente por causa das evidentes deficiências de serviços essenciais na capital e nas cidades satélites, como saúde, educação, transporte e segurança. É polêmica, em todo o lugar, menos no jornalismo impresso local, que não evidencia os contrates com as mazelas, não questiona sobre os gastos, e pior: resolveu enaltecer e homenagear a obra. Entre os próprios profissionais de comunicação que trabalham na cidade e nas escolas de jornalismo, é indiscutível o fato de que os veículos estão amarrados ao governo como se fossem house organs estatais. Nem mesmo a morte de bebês no Hospital da Ceilândia (a 30 km da capital), por causa de bactéria e ainda por outros motivos não esclarecidos, sensibilizou o jornalismo local. O caso foi tratado como fatalidade.

O Correio Braziliense, o maior da capital, expõe, de forma escandalosa, as mãos atadas e a posição de subserviência que vigora seja qual for o governador. Em abril, publicou hotsite e caderno especial com o título “Nasce um gigante”. As veiculações em abril (quando a capital completou 53 anos) iriam aproveitar a reinauguração do estádio no dia 21 de abril. Não deu certo. A obra bilionária (com capacidade para abrigar 72 mil torcedores) ficou programada para abrir as portas em 18 de maio, na final do campeonato brasiliense. O estádio será o cenário, se tudo der certo, para o primeiro jogo do Brasil na Copa das Confederações, contra o Japão, no dia 15 de junho. Por outro lado, a população ainda não sabe se pode contar com o mínimo de investimento para ter maior controle de saúde na maternidade da Ceilândia.

Nem divergências, nem contrastes, nem questionamentos

O caderno especial “Nasce um gigante”, produzido pelo jornal no dia 19 de abril (mesma data em que a maternidade foi reaberta para a população, o que mereceu apenas uma página factual), teve impressionantes 16 páginas. Chamar os conteúdos de “reportagens” seria um acinte ao bom jornalismo. Mas ao observar cada folha, ainda que de forma ingênua como se jornalismo fosse, é possível constatar que o espaço deixou se representar a população e seus direitos de entender para onde vão os impostos que pagamos. Isso ocorre a partir da manchete “Admirável estádio novo”, que seria para a população “uma arena multiuso moderna, no nível das obras monumentais que integram a cidade sonhada por Juscelino Kubitschek”. O jornal esquece que a filosofia de construção da nova capital seria de abrigar uma sociedade mais justa.

Entre os destaques, há títulos como “Adeus, complexo de inferioridade” (página 2), uma entrevista com o governador Agnelo Queiroz com 14 perguntas e nenhuma crítica (página 3), detalhes sobre a construção, personagens das obras, e nada, nenhuma palavra, sobre o custo estarrecedor e origem dos recursos para quem precisa respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal.

O hotsite, também batizado de “Nasce um Gigante”, também impõe a superficialidade na cobertura do assunto. Além disso, não é plural e nem dá voz a diferentes versões, a chamada multivocalidade. A falta de links e hiperlinks, e nenhuma atenção à interatividade, demonstram que lá não é espaço para a discussão, muito menos para o contraditório. No que se refere ao universo de abrangência, os links apresentados no hotsite são intratextuais, aqueles que levam o leitor a lexias somente de dentro do site do Correio Braziliense. Para ser plural, o link deveria atentar para elementos como os contextos do fato, os argumentos das fontes oficiais, todas as divergências, distorções e aproveitamento da característica da memória no jornalismo online. Mas não cabem aqui divergências nem contrastes nem questionamentos nem informação. Enfim, não é jornalismo, mesmo estando vestido assim.

Gol contra

O Jornal de Brasília, o segundo maior, usou o mesmo caminho. Fez elogios à grama que veio de Sergipe, aos homens e mulheres que ajudaram a construir, e também não impõe dor de cabeça à administração local. Sem os mesmos recursos, inclusive de material humano, não tem o mesmo fôlego nem mesmo para produzir um jornal como o Correio. Os veículos, em crise de seus negócios sempre tão lucrativos veem que a oportunidade de patrocínio em Brasília reduz-se com a falta de uma indústria pujante na capital dos organismos públicos. Parte importante dos jornalistas não é registrada em folha e recebem seus vencimentos como pessoa jurídica, um drible de corpo para diminuir custos com direitos trabalhistas.

Enquanto isso, a cobertura das mortes dos bebês, impossível de ser admitida na capital com o maior índice de desenvolvimento humano do país, é factual, tratada com a superficialidade, sem caderno especial, sem hotsite. O agente principal da informação é o governo: “Saúde confirma morte de dois bebês por bactéria”, “Mortes de mais dois bebês não estão relacionadas à bactéria, diz Hospital”, “Após mortes de bebês, hospital é reaberto” foram algumas das manchetes em espaços modestos. Na última notícia, a da volta ao funcionamento (dia 19.04), omite-se a dor deixada para trás para que o caderno “Nasce um gigante” tivesse destaque total. O que são perdas de filhos de gente simples, que não têm plano de saúde e vivem sob aflição, diante de um investimento de R$ 1,5 bilhão em uma obra monumental. E quantos dramas a população do Distrito Federal não soube, não conhece nem nunca ficará sabendo. O papel social do jornalismo nos meios impressos, na capital do país, ganhou caráter de utopia, idealismo barato, sonho impossível. Nas rádios e nas TVs, por incrível que pareça, ainda há surtos esporádicos de questionamentos críticos, mas podem sobreviver apenas até a bola rolar. Aí será somente festa. “Pra frente Brasil, salve a Seleção”. Os bebês da Ceilândia e de todos os hospitais públicos nascem sem festa, sem as luzes do jornalismo. Cada morte é vista como dado estatístico, apenas como um gol contra.

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Luiz Claudio Ferreira é professor de Jornalismo e Gabriela Echenique, estudante de Jornalismo