Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A narrativa que se engaja nas manifestações

Na transmissão das manifestações do Rio eles mobilizaram 300 mil espectadores, mas pautaram o trabalho de colegas que falam e escrevem para milhões. Revolucionários, ativistas e alegadamente apartidários os integrantes do grupo de mídia alternativa Narrativas Independentes Jornalismo e Ação (Ninja) transmitem ao vivo, sem grande preocupação com a qualidade da imagem e edição. O público parece não se importar e o Ninja chegou a contabilizar 200 horas ao vivo transmitindo a ocupação da Prefeitura Belo Horizonte.

Na noite de 22 de julho, durante a visita do papa Francisco ao Rio, o Mídia Ninja cobriu a manifestação que concentrou mais de mil pessoas próximo ao Palácio Guanabara. Da rua do palácio, onde polícia e manifestantes entraram em confronto no começo da noite, à porta da 9ª DP, no Catete, madrugada a dentro, foram horas de transmissão em tempo real que registraram as bombas de gás e o fogo dos coquetéis molotov até a detenção arbitrária de dois integrantes do Ninja, também transmitida ao vivo. Um deles era Filipe Peçanha, um mineiro apelidado de Carioca. Na noite seguinte, sua detenção por suposta incitação à violência tornou-se tema do “Jornal Nacional”, da TV Globo. Eles ganharam também as páginas do “The New York Times” e “The Guardian”.

Naquela semana, o Ninja ainda contribuiu para a libertação de Bruno Ferreira Teles, manifestante preso em Laranjeiras acusado de atirar coquetel molotov na PM e libertado graças a vídeos reunidos na internet. Como diz o próprio grupo em postagem no Facebook, “a cobertura cidadã de diversos indivíduos e grupos de mídia livre, inclusive a Mídia Ninja, estraçalhou a narrativa oficial da Polícia Militar do Rio de Janeiro”. Na mesma madrugada do dia 23, a página do grupo já denunciava vídeos que mostravam a ação de policiais infiltrados, P2, na manifestação.

Os ninjas carregam iPhones, laptops, baterias, câmeras e equipamentos de internet 3G em mochilas. Transmitem as imagens ao vivo usando várias contas no TwistCasting ou no site da Pós TV, projeto que começou em junho de 2011 a partir das transmissões das marchas da Maconha e da Liberdade, em São Paulo.

A próxima etapa é captar recursos diretamente dos espectadores transferindo a atual hospedagem do Ninja no Facebook para um site próprio – o da Pós TV cai quando aumenta o número de acesso – que permitirá financiamento por “crowdfunding”, o que deve acontecer logo.

“Com tesão”

É difícil explicar o que é a autoproclamada Mídia Ninja sem deixar de lado conceitos como patrão, salário e carga horária de trabalho. O produtor cultural Pablo Capilé, um dos fundadores do Fora do Eixo, rebate a alcunha de 'rebelde'. Corrige-a por 'autônomo'.

Contra as acusações de vinculação política – uma foto sua com o ex-deputado José Dirceu retirada da página de Capilé no Facebook circulou na internet em forma de denúncia da ligação do grupo com o PT – Capilé diz que há fotos dele com a atriz Mariana Ximenes, Lula, Marina Silva, FHC, João Pedro Stédile além de Gilberto Gil e Caetano Veloso, enumera.

“A esquerda fala que a gente é o novo capitalismo, a direita fala que a gente é o novo comunismo. Ninguém sabe direito onde a gente está porque a gente não é organizado por nenhum deles”, diz Capilé.

Bruno Torturra, Filipe Peçanha, Capilé e Felipe Altenfelder receberam o Valor em um apartamento comunitário na zona sul do Rio antes de saírem em duplas para acompanhar manifestações no Leblon e na Rocinha, em pleno feriado da visita do papa Francisco à cidade.

Explicam que o grupo é parte de uma cadeia muito maior de grupos em rede que reúne cerca de 2,4 mil pessoas em 250 cidades do país, além de um banco colaborativo. O grupo cresceu da costela do Fora do Eixo, que surgiu há cerca de 10 a 12 anos para produzir festivais de música durante a crise do mercado fonográfico.

Altenfelder conta que uma das ferramentas mais fortes do grupo era sua capacidade de produzir conteúdo e alcance. “Em 2011 e 2012 a gente começa a dar suporte a lutas contra a homofobia, por uma nova política de drogas, meio ambiente, terra, cultura digital, de hackers e midialivristas”.

Foi quando o grupo percebeu o potencial em mãos e criou o Ninja. “Refletindo sobre isso a gente chega à ideia do Ninja e ao conceito explicado pela sigla”.

Hoje o Ninja conta com cerca de 50 integrantes, mas o cadastro de colaboradores, que coleta emails e telefones em reuniões pelas cidades onde passam, soma milhares. “As pautas e coberturas nas ruas vão aproximando novas pessoas e mantemos diálogo com outros coletivos de comunicação”, diz Altenfelder.

Quando questionados se o fato de morarem juntos, sem receber pagamento individual está relacionado à economia de custos, Capilé explica que morar juntos não é uma condição.

Bruno Torturra, um ex-editor da revista “Trip” e um dos mais articulados do grupo mora sozinho, mas reconhece que é uma exceção. Capilé explica que a relação com dinheiro também é comunitária.

“Ninguém tem salário mas todo mundo tem a senha do cartão. Então todo mundo está o tempo inteiro colaborando um com o outro e somando os esforços para que aquele R$ 1 se transforme em dez”, afirma Capilé, que continua explicando que em vez de pagarem aluguel de 40 apartamentos eles concentram os recursos. “Para a gente multiplicar esse recurso, a gente desmonetariza as relações”, diz.

O modelo garante as necessidades básicas de todos, incluindo comida, plano de saúde, roupas, equipamentos, celulares e computadores (que todos têm), além das contas de luz e internet sempre pagas, enumera Capilé. “Se o cara estiver fazendo sem tesão, não rola. E morando coletivamente o cara também se sente mais seguro pra enfrentar o novo”, diz. “A gente não trabalha, a gente vive. O nosso ativismo é 24 horas”, afirma.

“Pós-espectador”

O jornalismo Ninja é engajado mas o grupo faz questão de frisar que só 3% a 7% dos recursos vêm de licitações de empresas públicas. “A maior parte do recurso é nosso. Por exemplo, a gente aprova um edital da Petrobras para a Universidade Fora do Eixo, mas no cômputo total, a soma dos recursos públicos dão 3% a 7%. Somos autogestionários. Isso nos dá, por exemplo, a autonomia de montar o núcleo de comunicação”.

A sensação das redes sociais na cobertura das manifestações, no entanto, não está imune a críticas, mesmo dos 140.682 fãs da Ninja no Facebook. Na entrevista de uma hora e meia com o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB) há duas semanas, a postura dos entrevistadores foi criticada na rede e classificada como despreparada. Para o grupo, a experiência foi um aprendizado tanto no enfrentamento com um político experiente, quanto na de abrir ao público a possibilidade de propor perguntas. “Quando você é muito novo e se coloca face a um desafio desses, há um valor pedagógico”, diz Altenfelder.

O Ninja atribui a violência nos protestos do Rio à polícia. “Os manifestantes, as pessoas que saem de casa e estão criando o hábito de ir nos protestos, são extremamente conscientes do papel delas e da responsabilidade delas de não serem violentas”, diz Torturra.

“Existem alguns grupos como o Black Bloc, que está sendo muito discutido e é especialmente bom de a polícia se infiltrar, já que usam máscaras. Eles têm técnicas um pouco mais duras de lidar com a manifestação. Mas têm uma teoria por trás disso. Não é vandalismo, quebra-quebra e desordem. Eles têm alvos específicos”, observa.

No cenário que se desenha para a mídia com as possibilidades da rede e equipamentos de transmissão online, até o público é cobrado sobre informações compartilhadas. “Estamos vendo emergir o pós-espectador. Começamos a entender que ele não é passivo, que tem uma responsabilidade na hora que replica, que comenta, que dá um 'like' [curtir], que usa algo de uma fonte. Ele tem responsabilidade também”, teoriza Torturra.

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“Passamos dos meios de massa para a massa de meios”

“Estamos diante da transformação da outrora passiva audiência nas atuais redes ativas de pessoas conectadas 24 horas”, diz Rosental Calmon Alves, professor de jornalismo na Universidade do Texas em Austin e diretor do Centro Knight para o Jornalismo nas Americas. Ex-editor do “Jornal do Brasil” na década de 1990, onde criou o primeiro serviço de notícias em tempo real do país, Calmon Alves vê no Mídia Ninja um exemplo do novo tipo de jornalismo baseado na abundância de informação provida na rede. A seguir, os principais trechos da entrevista por e-mail ao Valor:

Qual sua opinião sobre o jornalismo do Midia Ninja?

Rosental Calmon Alves – Nesta nova era em que estamos entrando, qualquer pessoa comete atos de jornalismo. O jornalismo não é mais monopólio de jornalistas. O que estamos vendo é a possibilidade de qualquer pessoa se transformar em mídia, capaz de falar para milhares de outras pessoas, criando audiência e praticamente todas as características do jornalismo. O Midia Ninja é um exemplo de um novo gênero de jornalismo alternativo, militante, radical e inovador que nasce diretamente das facilidades de comunicação oferecidas pelas tecnologias digitais.

É possível falar de obsolescência da mídia?

R.C.A. – A velha mídia ficará obsoleta se não acordar para as amplas, profundas e radicais mudanças que estão ocorrendo. Algumas empresas jornalísticas ou mesmo jornalistas entenderão as mudanças e irão prosperar no novo ambiente. Outros resistirão às mudanças, se tornarão obsoletos e morrerão. O jornalismo será bem diferente do que tínhamos antes. Passamos da era dos meios de massa para a era da massa de meios. Mas isso não quer dizer que todos os meios de comunicação são iguais, que uma pessoa que se transforma em meio tenha o mesmo peso dos meios organizados, profissionalizados. Os dois convivem e se complementam.

Na massa de meios, quem filtra e processa a informação?

R.C.A. – O contador de histórias sempre foi um especialista, uma função específica em qualquer grupo humano, desde os primórdios da humanidade. Mesmo num ambiente em que qualquer pessoa pode cometer atos de jornalismo, o jornalista profissional, que atua com base em uma metodologia específica, em princípios éticos e deontológicos específicos continuará sendo necessário. Estamos diante da transformação da outrora passiva audiência nas atuais redes de pessoas conectadas 24 horas por dia, mas, em meio à cacofonia criada neste processo, a voz das organizações jornalísticas ainda é importante. Talvez ganhe até mais importância.

O que o Ninja põe em xeque?

R.C.A. – O jornalismo tradicional não percebeu ainda que o mundo não se resume às informações processadas, editadas, filtradas. Agora podemos circular com enorme velocidade e a custo quase zero informações brutas, não filtradas, não editadas. Uma coisa não elimina a outra. O novo ecossistema de mídia ainda está em mutação. Mas se o anterior era baseado na escassez de informacoes, o novo se baseia na abundância. Uso a metáfora do deserto, com seus cactus, arbustos secos e poucos animais para definir o ambiente de mídia da era industrial, do quais estamos saindo. E uso a floresta amazônica como a metáfora para explicar o que se está formando depois do dilúvio digital: uma selva úmida, cheia de água, sol e vida, com uma enorme biodiversidade, onde qualquer ser minúsculo tem uma chance de sobreviver.

A prisão de jornalistas do Ninja fere a liberdade de expressão?

R.C.A. – Daqui dos Estados Unidos, eu assisti ao vivo a cobertura desse episódio pela própria Midia Ninja. Foi um fenômeno para ser estudado. As câmeras dos telefones celulares do Midia Ninja e de outros cidadãos que transmitiam ao vivo a prisão do colega eram como os olhos virtuais de milhares de pessoas que estavam, como eu, à distância. Quando os celulares mostraram o nome do tenente que prendia o Ninja, muitos da audiência começaram a investigar. Em minutos, no chat ao lado da tela do Twitcasting (serviço na web para transmissão de vídeo ao vivo) começaram a aparecer informações sobre o tenente, inclusive fotos e a página no Facebook.

Nas manifestações a mídia tradicional é hostilizada.

R.C.A. – Fico muito preocupado com essa hostilidade, principalmente com os ataques aos jornalistas profissionais. Existe uma paranoia muito grande que leva muita gente a achar que tudo o que a grande midia faz é parte de alguma conspiração, que qualquer erro da imprensa foi proposital e responde a interesses escusos. Essa hostilidade, essa demonização generalizada da imprensa é perigosa e não leva a nada. (CS e GS)

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Cláudia Schüffner e Guilherme Serodio, do Valor Econômico