Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma imprensa alternativa que produz conhecimento

Apesar de marcar o 26º aniversário do Jornal Pessoal, esta edição só não é inteiramente rotineira porque decidi reproduzir parte do texto que Manuel José Sena Dutra escreveu anos atrás sobre o JP. Assinala com muita propriedade a relação do jornalismo com a academia, relação que o próprio Dutra expressa: sem deixar de ser jornalista, ele cruzou os muros da universidade e fez uma brilhante carreira como professor e pesquisador, chegando ao doutorado. Dessa nova perspectiva, pode analisar os dois mundos, que, infelizmente, na maioria das vezes, não interagem. É a homenagem que faço aos 26 anos do JP, usando a competente pena alheia. (Lúcio Flávio Pinto)

 

Embora tenha estado presente em ambientes acadêmicos e de pesquisa, Lúcio Flávio foi paulatinamente sendo também preterido nesses ambientes em virtude de não aceitar os cânones e rituais clássicos da comunidade científica.

No desempenho do papel de intelectual público, Lúcio Flávio paulatinamente abandonou a condição de mediador de informação para assumir o status de voz especializada, de disseminador de saberes sobre a região, o que motivou o crescente reconhecimento do meio acadêmico.

A Academia já teve o Jornal Pessoal como objeto de análise em oito teses e dissertações, a maior parte delas centralizadas no ECA-USP, além de um número impreciso de referências em livros e revistas científicas. O destaque é sempre no sentido de análise de um trabalho que produz conhecimento sobre uma região que, a despeito de seu significado como banco genético e sua magnitude física em relação ao território brasileiro, continua, ainda, vista como algo exótico e distante do Brasil.

José de Souza Martins acredita que Lúcio Flávio seja “um dos pesquisadores que, com mais competência, se lançou no rastro desse saque [a ocupação da Amazônia no seu aspecto histórico e contemporâneo]”. Para ele,, o jornalista paraense “é tido, com justa razão, como um dos melhores conhecedores dos problemas sociais, políticos e econômicos…” da região.

Esse tipo de reconhecimento do ambiente científico o colocou na posição de um dos maiores especialistas sobre a região, dominando, pelo conhecimento e estudo intermitente, variadas temáticas, entre elas a construção de usinas hidrelétricas e suas implicações técnicas, sociais e econômicas. Domina, como poucos, questões ligadas à mineração, ao meio ambiente, ao direito agrário e à política regional.

Em lugar do ostracismo que os meios convencionais tentaram lhe impor, Lúcio Flávio decide criar, em 1987, o Jornal Pessoal, nome que diz de si. A ninguém teria que dar satisfações pelas informações que desejasse produzir e divulgar. O JP, como ficou conhecido nos últimos 20 anos, passou por todos os percalços de uma iniciativa desse tipo. No período de 20 anos, até 2007, deixou de circular em alguns momentos por dificuldades financeiras, foi vendido a assinantes, circulou em bancas, sofreu muitos processos por vasculhar fontes e informações vetadas pela “grande” imprensa regional.

Aliás, é esta característica – a de publicar temas ocultados pelos principais jornais amazônicos – que dá ao JP a característica de alternativo, ou seja – fiel ao termo – busca um alterum, uma outra forma de mostrar conteúdos cuja gravidade não motiva o rompimento de históricas solidariedades entre os grupos de poder regionais, entre si, e ao mesmo tempo aliados aos detentores do capital externo (nacional e estrangeiro) que, nos últimos 40 anos, decidiu transformar a Amazônia à la diable, acelerando, pelos tratores D-8 e pelas correntes por eles arrastadas, um processo de devastação que vem de 400 anos, mas que agora intensificava-se, racionalizava-se mantendo a lógica do colonizador, cuja essência é que a riqueza natural de regiões como a Amazônia aí está para a solução de problemas metropolitanos, não dos povos que a habitam.

Fora das rotinas

O jornal de Lúcio Flávio Pinto, com aparência de apostila, formato A-4, sem fotos, mas com ilustrações bem humoradas produzidas por seu irmão Luiz, apenas circula hoje em bancas e é enviado para poucos fora de Belém. Aliás, por poucos é lido, com uma tiragem de 2 mil exemplares, a 5 reais a unidade, com 16 páginas que se reproduzem em cópias reprográficas que circulam por ambientes os mais variados, em alguns deles como autêntico meio underground que não pode ser lido abertamente ou explicitado em voz alta.

No entanto, os poucos que o leem o têm como referência notadamente para fatos e análises de questões sonegadas pela mídia em geral. Um universo leitor mais de qualidade do que de quantidade. As elites de poder de Belém o procuram mais nos momentos em que Lúcio Flávio esmiúça a permanente contenda entre as famílias Barbalho (do senador, ex-deputado federal, ex-governador e ex-ministro Jader Barbalho, dono do jornal Diário do Pará e do Grupo RBA – Rede Brasil Amazônia, afiliada ao grupo Bandeirantes) e os Maiorana (do grupo ORM, Organizações Romulo Maiorana de Comunicação, donos do jornal O Liberal, TVs e Rádios, TV a cabo, afiliados à Rede Globo). “Ambos têm razão quando se acusam”, costuma afirmar Lúcio nesses casos.

Lúcio evoluiu, com seu JP, para uma forma de fazer jornalismo distinta das rotinas habituais dessa atividade. A credibilidade adquirida por seu labor solitário ensejam-lhe uma posição enunciativa privilegiada e que difere dos demais jornalistas: Lúcio informa, analisa, dá seus pontos de vista com um texto no qual quase nunca se percebe a existência de aspas. Ele aparece aí como intelectual público, jornalista-autor e, muitas vezes, como fonte das informações contidas em relatos de fatos que presencia, analisa, interpreta.

Torna-se assim fiel ao nome do meio de comunicação que lhe resta: algumas folhas A-4 nas quais oferece informações e o seu pensamento. Aliás, o jornalista paraense, nascido na cidade de Santarém, pouco tem podido presenciar os fatos que testemunhava de corpo presente nos anos em que não respondia a 14 processos judiciais simultâneos, como informou em janeiro de 2008.

Distante dos laboratórios

A questão que se levanta aqui é: a partir do visto na sucinta descrição acima, pode a comunidade científica e a comunidade dos jornalistas científicos considerarem o trabalho de Lúcio Flávio como divulgação da ciência, que no título chamamos apenas de conhecimento? O autor do Jornal Pessoal diz que não, que seus textos são apenas jornalismo e que utiliza o saber metódico da ciência como forma de enriquecer as matérias jornalísticas.

Lúcio vem daquela geração para a qual a especialização não deve ser empecilho para a cobertura de qualquer temática da vida social, como veremos, no prosseguimento deste trabalho, nas palavras do próprio pauteiro-repórter-redator-editor-pensador do JP. Para essa forma de jornalismo, o que importa é não sonegar ao leitor aquilo que o jornalista julga imprescindível para o conhecimento público, por meio do qual a sociedade pode mobilizar-se.

É evidente que há os que têm esse preparo e essa consciência, como constata a grande batalhadora pelo jornalismo científico no Brasil, Fabíola de Oliveira, dez anos depois daquelas respostas do Aterro do Flamengo: “O conhecimento e a discussão sobre a ciência há muito deixaram de ser privilégio de cientistas e pesquisadores presos no laboratório, trabalhando muitas vezes distanciados da realidade social”.

A própria Fabíola produziu sua dissertação de mestrado, em 1990, na ECA-USP, sobre “Jornalismo científico e Amazônia: estudo de quatro jornais brasileiros”, da qual o quarto capítulo “A visão de um jornalista da Amazônia” constata que Lúcio Flávio é “um militante, quase um guerrilheiro solitário do jornalismo na Amazônia”.

Nessa interseção podemos considerar o jornalismo do Jornal Pessoal como disseminador não apenas do rotineiro “factual”, para inserir-se no esforço que requer a realidade social carente do conhecimento para situar-se no mundo, ter o domínio de seu ambiente, compreender o que lhe está à volta. Sem rótulo nem adjetivo, supomos ser esse o objetivo do alternativo amazônico: não desconhecer a ciência – o que a sua história e o volume de seus textos comprovam – porém manter-se fiel àquilo que poderíamos chamar de a essência do conceito de jornalismo: procura, seleção, análise e divulgação crítica dos fatos que não podem passar despercebidos da sociedade, sob qualquer pretexto de tempo e lugar.

Conversa com o autor do JP

Se alguém classificasse o JP como um jornal que privilegia a divulgação do conhecimento científico, que dirias?

Lúcio Flávio Pinto – Que não é verdade. Uso a ciência para dar maior consistência ao meu jornalismo. Se escrevo sobre hidrelétricas, estudo como é que elas são construídas, como funcionam, seus efeitos. Se é sobre desmatamento, estudo a geografia da região, a floresta, as consequências da sua derrubada, o significado econômico que elas têm. Se falo de mineração, a mesma coisa: procuro me familiarizar com a geologia, a economia mineral, etc. Se quero saber como está uma empresa, vou analisar o seu balanço. Se quero saber como age um governo, consulto o Diário Oficial para verificar seus atos. O conhecimento científico é um dos meios para chegar à verdade, assim como são meios a entrevista, a visita a locais.

Acreditas que o jornalismo científico é uma forma específica de jornalismo diante do jornalismo geral?

L.F.P. – Nunca usei a expressão e acho que essa especialização não devia existir. Já fiz matérias sobre ciência, esporte, economia ou política sem ser um jornalista especializado. A especialização é um componente adicional, mas não essencial. Posso ser especialista em cachimbos e escrever sobre polícia.

Como vês a divulgação do conhecimento científico na mídia paraense e amazônica? Difere em algo da “grande” mídia “nacional”?

L.F.P. – Não. A imprensa nacional tem mais vantagens porque tem mais gente e meios & modos de apurar a produção científica mais de perto e amplamente. Na imprensa local é produto do acaso ou de circunstâncias. Não há qualquer forma de cobertura sistemática.

A questão: num dos momentos da tese da professora Maria do Socorro Veloso Furtado está escrito que, em eventuais controvérsias com teus leitores, dás a palavra a eles (o JP comprova), porém a última palavra sempre é tua. Existiria, nessa tua posição, alguma coincidência com o que dizem os autores que citei acima? Teu leitor se assemelha ao recebedor da informação científica tal como visto pelos autores citados?

L.F.P. – Ele se coloca nessa posição, mas eu gostaria que fosse mais ativo. Só tenho a última palavra se o leitor nada mais tiver a dizer a respeito das questões que discutimos. Às vezes algumas pessoas dizem que escrevo muito mais do que o leitor ao responder-lhe a mensagem. É verdade. Mas só nos casos em que sou acusado. Na inversão do princípio jurídico, quem acusa, no Brasil, não se preocupa em demonstrar suas acusações, tarefa que é transferida ao acusado.

Assim, tenho que demonstrar que não sou títere do Jader Barbalho, conforme a acusação recorrente e refratária à lucidez. Fora dessa situação, porém, me contenho para não criar uma relação desequilibrada com o meu leitor e me restrinjo a esclarecer o que ele diz ou a situar o que ele diz no âmbito do interesse coletivo.

O que ocorre, na esmagadora maioria das vezes, é um silêncio (incompreensível ou inaceitável) do leitor a questões tão graves que lhe proponho, que frequentemente não aparecem em outro veículo da imprensa, apesar de sua relevância para o interesse público. Quem fizer uma análise de signos verbais do jornal constatará a quantidade de perguntas e questões, rastreando o sinal de interrogação. Interrogo permanentemente o leitor, que, no mais das vezes, faz de conta que não é com ele. Infelizmente.

Uma conclusão

Pelo exposto, e pelas palavras do próprio autor do Jornal Pessoal, percebemos que não existe, no fenômeno do alternativo amazônida, uma cisão entre o fazer e o refletir, aquela discussão estéril que ainda permanece em muitas escolas de jornalismo, sobre “prática” e “teoria”. Lúcio Flávio informa e dá a sua interpretação à luz de seu conhecimento acumulado, simbiose do cientista social e do jornalista atento aos acontecimentos presentes. Estes acontecimentos são relacionados a descobertas científicas, impregnando a notícia de um saber por meio do qual o leitor poderá compreender melhor o presente, percebendo a sua história e adquirindo a possibilidade de reflexão sobre o futuro.

Como afirma Eni Orlandi, os efeitos de sentido voam ao longo dos séculos, modificam-se, porém os enunciados mantêm a essência de sua história, permanecendo ainda que de modo fragmentário. Neste sentido, muito dos sentidos do sciens (e também do nescio, como deplora com frequência o autor do JP) podemos encontrar nos textos de Lúcio Flávio, tanto quanto naquelas formas de pensar a ciência e a sua divulgação não especializada por jornalistas especializados. A não ser que estejamos, de modo absurdo, imaginando que possa existir um jornalismo científico cujo conceito se distancie dos conceitos do jornalismo não adjetivado.

Imaginamos que os textos do JP apenas se conformem de modo distinto do conceito geralmente aceito no referente à divulgação científica. A despeito da distinção formal entre o JP e outras formas de disseminação do saber (o que implica também conteúdos) os sentidos milenares do sciens, “que sabe”, que é “informado”, “com conhecimento de causa”, “de caso pensado” tornam-se contemporâneos. O sentido de sujeitos que conhecem, compreendem e reconhecem e por isso se posicionam.

Se o trabalho do alternativo amazônico pode ser criticado por rejeitar o cânon da comunidade científica, ao mesmo tempo é criticável um (im)provável apego jornalístico inadvertido a esse mesmo cânon. A ser isso realidade em alguns ambientes (como já dito, não é a regra geral, por suposto) o jornalista pode ganhar, mas perderá o leitor/espectador/ouvinte/internauta.

Se nos desvencilharmos das rotulações com frequência irrefletidas, perceberemos o Jornal Pessoal como um lugar de produção de conhecimento, com seu autor sendo, ele próprio, produtor e não apenas intermediário/intérprete entre quem produz e quem recebe a informação.

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Manuel José Sena Dutra é jornalista, doutor em Ciências Socioambientais pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará