Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os jornalistas e as verdades

Admiro bastante o estilo de Carlos Brickmann e sua perspicácia em identificar bobagens e/ou incoerências na imprensa. Posso dizer, inclusive, que aprendi muita coisa com ele nesses anos todos de OI. Assim como também aprendi com Alberto Dines, Luiz Egypto, Venício Lima, Luiz Weis, Luiz Antônio Magalhães, Luciano Martins Costa e outros.

Porém, isso não exime Brickmann de às vezes também escorregar na mensagem. Foi o caso em alguns momentos do artigo “Os donos da verdade“ [OI, 14/01/2013, edição 781], que é dividido em vários tópicos, como de hábito.

Nem vou entrar no mérito do dito “ódio à imprensa” (anunciado por Eugênio Bucci em artigo publicado no Estado de S.Paulo, reproduzido em vários jornais do país e endossado por Carlos Brickmann em um dos tópicos do artigo que comento). Isso merecia uma consideração mais longa e mais profunda do que posso fazer neste momento, então vou pular essa parte. Mas algumas coisas preciso comentar.

Os comunistas estão chegando

Por exemplo, no tópico “A ciência e a fé” Brickmann estava perfeito… até usar como referência o link do blog de um certo Luiz Dufaur, que tem uma extensa lista de blogs na web. Evidentemente não há mal nenhum em se ter vários blogs, ainda mais se o sujeito tem tempo para atualizá-los. O curioso, no caso, é que boa parte dos blogs em questão é dedicada a combater o comunismo, que o autor consegue enxergar em todas as esferas da vida pública e privada.

Tem comunismo misturado com religião, comunismo misturado com direitos humanos, comunismo misturado com ecologia… O negócio chega a ser engraçado. Porque você fica imaginando o tipo de sonhos (ou pesadelos) que uma pessoa assim tem à noite. Imagine só: os comunistas chegando enquanto você dorme. Deve ser de tirar o sono. Ainda mais que dizem que eles comem criancinhas. A impressão que fica, a partir da leitura de tal fonte sugerida por Brickmann, é que a teoria do aquecimento global foi invenção de comunistas. Poucas vezes eu li uma bobagem tão grande. Muitas das empresas, governos e pessoas físicas que patrocinam ou incentivam a teoria do aquecimento contradizem tal raciocínio.

Conheço inúmeras pessoas de esquerda (para não ficar apenas no simplismo do “fantasma do comunismo”) que nunca aceitaram tal teoria. Ou que mudaram de opinião a partir do surgimento de evidências contrárias. Eu mesmo, que hoje sou identificado com a Esquerda, nunca engoli a história das mudanças climáticas provocadas pelo Homem. Uma vez alertei, creio que no blog do Fábio Pannunzio (e talvez até mesmo aqui no OI), que o pessoal que estava referendando a teoria do aquecimento iria pagar um mico homérico, que teria nos livros de História do futuro as mesmas observações hoje destinadas ao geocentrismo.

Relacionar a teoria do aquecimento global, que envolve inclusive o profícuo negócio dos créditos de carbono (tipo de especulação que não tem nada a ver com comunismo, pelo contrário), a frentes de esquerda é quase nonsense. Creio que está havendo uma confusão enorme nisso. O fato de uma parte da esquerda ter adotado essa agenda não significa, por exemplo, que todos os cientistas que endossaram a teoria do aquecimento são de esquerda (ou, pior ainda, que são comunistas). Nem mesmo se pode dizer que a maioria é. Onde há dados seguros sobre isso?

A mecânica que está sustentando doações milionárias para pesquisas de aquecimentistas mostra que tem algo errado nessa concepção de que o aquecimento global seria coisa de comunistas. Bancos, companhias aéreas e milionários excêntricos estão entre os que mais colocam dinheiro nesse tipo de linha de pesquisa. E nem é preciso reportar o espaço dado aos aquecimentistas na mídia, setor que também está bem longe de se alinhar com o comunismo, muito pelo contrário.

É importante dizer que não estou questionando a integridade da fonte usada por Brickmann. Até compartilho do mesmo entendimento de que o aquecimento global é um enorme equívoco conceitual, para não dizer outra coisa. Porém é um absurdo sem tamanho insinuar que foram comunistas que inventaram a teoria do aquecimento. Ou que estes tenham motivos para sustentá-la. Eu, Brickmann e a fonte dele convergimos no sentido de perceber caroço no angu do aquecimento global. Porém aparentemente somente eu não estou vendo fantasmas comunistas nessa história.

Publicidade é a alma do negócio?

Adiante em seu artigo, no tópico “Quem paga, tem”, Brickmann reporta informação da ABA (Associação Brasileira de Anunciantes) e da Abap (Associação Brasileira das Agências de Publicidade) sobre uma suposta perseguição da Rede Record a marcas que não anunciam naquela emissora.

É um caso a investigar, certamente. Mas também não seria o caso de investigar por que veículos de comunicação têm tanta “dificuldade” para realizar reportagens que envolvem notícias negativas a certos anunciantes?

Por exemplo: qual veículo da grande imprensa produz matérias sobre saúde e informa de maneira ampla os malefícios causados por refrigerantes? Será a onipresença da Coca-Cola que inibe isso? Observe-se: a Coca-Cola, depois de uma reportagem da Record que repercutiu na web, lançou uma ofensiva sem precedentes em termos de publicidade institucional no Brasil. Nunca eles estiveram tão preocupados em demonstrar que não envasam coisa ruim nas unidades da empresa, embora para isso recorram a típicos artifícios de marketing e discursos manjados de assessorias de comunicação.

A Coca-Cola ampliou os espaços publicitários que já tinha em certos veículos e estendeu suas vinhetas e banners a vários outros sites e portais de notícia onde ainda não estava presente. Fez mais: criou uma campanha institucional onde anuncia os “4 compromissos da Coca-Cola“. Lidos friamente e confrontados com o bom senso, tais compromissos soam quase como um deboche ao consumidor. É difícil dizer qual dos quatro compromissos da Coca-Cola é mais fantasioso, mas a ideia geral de que refrigerantes combinam com uma vida saudável dá para dizer que é quase um crime. Não existe nenhum nutricionista sério no mundo que vá endossar essa surpreendente sugestão da Coca-Cola.

Daí emerge uma pergunta: por que a imprensa brasileira não questiona essas informações? O Idec estava em cima deles, justamente porque em outros países a Coca-Cola foi forçada a reduzir a quantidade de corante caramelo IV em seus produtos. Os corantes amarelo tartrazina e amarelo crepúsculo, igualmente usados em alguns refrigerantes e igualmente prejudiciais à saúde, também estavam na mira da Fundação Proteste.

Agora vem a outra parte estranha da coisa: vários links de portais e sites de notícia que replicavam artigos do Idec e da Proteste envolvendo refrigerantes sumiram da web. Eles ainda aparecem nos sistemas de busca (Google, Bing, Yahoo etc.), mas as matérias não existem mais em vários sítios relativos. Em alguns desses sites hoje há banners da Coca-Cola. Não seria o caso da imprensa, suposta defensora da sociedade, investigar este “fenômeno”?

Outras lebres

Para não ficar apenas no exemplo da Coca-Cola, vou citar algo que considero ainda mais grave: em 2006 escrevi um artigo para o OI, falando en passant sobre os erros da indústria automobilística no Brasil. Chamava-se “Montadoras erram, imprensa aplaude“ [OI, 20/06/2006, edição 386]. Não por eu ter escrito (acho até que hoje poderia fazê-lo de forma mais clara e com mais elementos), mas é emblemático que não tenha sido dada a devida atenção ao que o texto dizia. Havia caminhos sutis apontados lá. Um bom repórter investigativo poderia ir atrás de informações com relativa facilidade.

Esperava-se que algum bom jornalista fizesse ao menos dois questionamentos: 1) por que há tantos problemas na cadeia de produção de automóveis?; e, 2) por que a imprensa se comporta como mera espectadora diante desses problemas? São duas perguntas condizentes com o jornalismo, ou não? Indo mais longe: qual a relação que há entre os portentosos anúncios publicitários de montadoras e concessionárias de automóveis (hoje sem dúvida os maiores anunciantes de jornal, rádio e TV, desde quando baniram as propagandas de cigarro) e a letargia da imprensa diante de carros com defeito – que podem estar por trás de muitos acidentes atribuídos a álcool, cansaço, sono, imprudência e/ou problemas nas rodovias?

Não seria o caso de consultar o pessoal da Anvemca, por exemplo? O site deles curiosamente tem sido bombardeado por comunicações falsas de “site prejudicial”. Por causa disso alguns provedores DNS eventualmente bloqueiam o acesso ao site. Mas por esta pequena entrevista para a Revista Fórum é possível ter uma vaga ideia do que eles têm a dizer (e a mostrar, segundo me confidenciou o próprio coordenador da Anvemca, Jaílton de Jesus Silva, que afirma ter inúmeros documentos e laudos técnicos atestando erros grosseiros das montadoras).

Isso não deveria interessar à imprensa? Problemas crônicos e sistemáticos na linha de produção de automóveis não é um caso de interesse coletivo da sociedade civil, que é consumidora direta desses veículos? Tenho telefone, e-mail e ID Skype do Jaílton, caso necessário.

Então será que uma parte da imprensa persegue quem não anuncia, ou será que uma parte maior ainda da imprensa silencia em relação a quem anuncia? É necessário examinar bem essa equação, porque a ABA e a Abap resolveram caçar um coelho e atrás dessa moita pode haver outras lebres escondidas.

Jornalistas

Outra coisa, considerando que Brickmann cita pelo menos duas vezes um certo Ucho Haddad, fiquei curioso por saber quem era tal jornalista, já que não me recordo de tê-lo visto atuando na grande imprensa. Ironicamente achei uma pequena biografia que teria sido publicada no portal Comunique-se em 2003 e que foi reproduzida aqui mesmo neste Observatório.

Uma parte mais ampla dessa biografia, que envolve detalhes da entrevista que embasou o artigo do Comunique-se, foi-me apontada pelo Google em um lugar improvável: a finada rede social Orkut. Infelizmente não achei outro link, mas a riqueza de detalhes do texto não faz parecer que tenha sido manipulado ou seu teor inventado. Em última análise dá para contatar os jornalistas José Paulo Lanyi, Fabiano Falsi e Fábio José de Mello, que assinam o artigo do portal Comunique-se, e obter mais informações.

De qualquer maneira, independente dessa parte nebulosa, a linha editorial de Ucho Haddad deixa claro que o governo petista é um inimigo a combater, que simplesmente não acerta nunca. Isso nos remete ao primeiro parágrafo do artigo de Carlos Brickmann, onde ele cita os chamados “jornalistas engajados”. Mais engajado do que esse Ucho, é difícil. Ou melhor: não é muito diferente do que é possível observar na imprensa em geral. Os jornalões do Brasil estão cheios de militantes com crachá de jornalistas. Vários deles são articulistas e vivem de formar opinião, inclusive. Tem até jornalista aposentado que ainda milita adoidado, agora em redes sociais.

Essa não é a parte ruim. A parte ruim é que eles não se assumem como partidarizados, embora muitos leitores já sejam capazes de perceber o tipo de discurso empregado por eles. Não se sabe por que eles tentam manter uma aura de “imparcialidade”, que simplesmente não existe, mas o fato é que esse tipo de percepção está motivando críticas fortes e cada vez mais frequentes ao jornalismo brasileiro.

Daí porque talvez alguns jornalistas se sintam perseguidos por “militantes alucinados” – novo rótulo que observadores e críticos da imprensa, formados e condicionados pelo próprio Observatório da Imprensa ao longo de 17 anos, às vezes andam recebendo por aí.

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Marcelo Idiarte é jornalista