Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalismo e o pessimismo da razão

A Agência Pública nasceu com o propósito de realizar um jornalismo confiável, crítico e independente. Por isso, causa estranheza a reportagem publicada na segunda-feira (17/2, “Quem grita ‘Não vai ter Copa’?“), com ampla circulação pelas redes sociais, voltada não exatamente a investigar – porque isso demandaria muito mais tempo e esforço –, mas a expor o que é, como se organiza e quem participa do movimento cujo mote é “Se não tiver direitos, não vai ter Copa”.

O texto saiu no blog Copa Pública, apresentado como “uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora”. Destoa,entretanto, de várias outras boas reportagens reunidas no mesmo espaço.

Ausência de crítica

O repórter cita acriticamente os objetivos dos participantes, a partir de um manifesto lançado em dezembro do ano passado que, por si, já suscitaria uma série de questionamentos. Por exemplo, quando propõe “mostrar nacionalmente e internacionalmente que o poder popular não quer a Copa”.

Poder popular? Não seria o caso de indagar não apenas o significado dessa expressão mas os motivos que levam esse movimento, inserido na onda da contestação da democracia representativa, a se autoatribuir tal representação?

O mesmo manifesto menciona a vitória da luta pela revogação do aumento das passagens de ônibus no ano passado – o que, a princípio, parecia impossível – e sugere uma comparação com a demanda pela não realização da Copa no Brasil, pois “o impossível acontece”. Certamente, mas uma coisa é confrontar os interesses dos empresários do setor de transporte, outra é enfrentar o poder da Fifa e de toda a monumental estrutura mobilizada para a realização de um megaevento como esse. Não seria oportuno levantar essas questões na reportagem?

Representatividade

Nas entrevistas, o repórter reproduz declarações de que o movimento não é ideológico. É possível aceitar acriticamente tais afirmações? Ao citar as articulações com grupos de ciberativistas, apenas menciona a hipótese de que o Anonymous e similares estejam associados a “setores conservadores, até mesmo à própria polícia”. E pronto: oferece assim, canhestramente, numa frase, o “outro lado” de uma polêmica antiga e muito difícil de investigar.

Passa longe do texto qualquer questionamento quanto à eficácia e representatividade das manifestações, francamente esvaziadas desde julho do ano passado. Pelo contrário, o repórter fala em “crescimento da articulação”, embora o que se veja, atualmente, sejam iniciativas de grupos reduzidos que atuam de acordo com um roteiro previsível, cujo desfecho é a depredação e o confronto com a polícia. A esse respeito, a única referência é de que o movimento rejeita atos violentos. Se eles acontecem, é responsabilidade das forças de repressão, ou é porque as convocações são abertas, via redes sociais, e participa quem quiser. O suposto desvirtuamento das manifestações não é objeto de preocupação.

O desejo e a realidade

O repórter levanta questões apenas em relação às acusações corriqueiras de que esses protestos servem à direita e à existência de alguma contradição entre os que estão empenhados em, de fato, “barrar a Copa” e os que consideram esta uma palavra de ordem voltada à luta pelas reparações a quem foi desalojado ou teve prejuízos com as transformações do espaço urbano para a realização do evento.

Os protestos contra a Copa têm a força da denúncia da “cidade de exceção” que se radicaliza no contexto atual e da crítica ao governo que se submete a exigências externas incompatíveis com o respeito aos direitos elementares dos cidadãos, em particular da população pobre. Mas, como ocorre tantas vezes, a paixão militante leva a amoldar a realidade ao desejo. Daí que os militantes precisam ser expostos à crítica.

O bom jornalismo tem esse compromisso, mesmo ou sobretudo quando não mascara de que lado está: não pode se furtar ao pessimismo da razão. Menos ainda num momento tão tenso como o de hoje, em que a informação confiável é tão rara e, por isso mesmo, ainda mais preciosa.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)