Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Suspeita de fraude e ‘sensacionalismo’ em revistas científicas

Já foi o tempo em que se podia dizer que os exageros na divulgação de novidades da ciência eram sempre provocados pela imprensa. A própria comunidade científica passou a ser geradora de sensacionalismos desde o final do século 20, quando algumas de suas publicações, os chamados periódicos. Algumas dessas revistas começaram a ser menos exigentes em relação à isenção e ao caráter crítico, não de seus artigos científicos, mas de suas reportagens e outros textos explicativos, que passaram a ser mais atrativos para a avidez da imprensa por notícias de impacto, especialmente por boas notícias para a saúde humana. Essa tendência foi um dos ingredientes da repercussão internacional, no final de janeiro, da pesquisa realizada no Japão que propunha uma técnica promissora para terapias com células-tronco e voltou a ser anunciada nesta semana por estar sob investigação por suspeita de fraude .

Apesar do costume de se retratarem publicamente em relação aos seus artigos envolvidos em casos de fraudes, plágios e outros tipos de má-conduta científica — como mostra o monitoramento realizado pelo blog Retraction Watch —, os chamados periódicos praticamente nunca adotam o mesmo procedimento sobre o estardalhaço provocado por seus materiais elaborados para divulgação em paralelo para o público não especializado, inclusive e especialmente para a imprensa.

Acusações e investigações

Na segunda-feira (17/2), a prestigiada revista científica britânica Nature divulgou em seu site que já teria iniciado uma averiguação sobre acusações de adulteração de imagens em um dos dois trabalhos desenvolvidos no Japão, ambos publicados na edição de 30 de janeiro, que anunciaram a reversão de células de diversos tecidos de camundongos para o estágio embrionário por meio de nada mais que um banho ácido. Junto com essa notícia estava a promessa de dispensar os riscos e as complicações de técnicas que envolvem manipulação genética de vírus para desenvolver tratamentos de diferentes tipos de câncer e doenças como as de Parkinson, Alzheimer e outras. Restaria apenas reproduzir em humanos os resultados obtidos com cobaias.

Ao anunciar essa apuração, a Nature afirmou que já havia sido iniciada na semana anterior uma investigação sobre a pesquisa pelo próprio Instituto Riken, ao qual pertence o Laboratório de Reprogramação Celular, onde trabalha a autora principal dos dois estudos, a bióloga Haruko Obokata, de 30 anos de idade. E ressaltou também o fato de que especialistas de outras instituições afirmaram não terem conseguido reproduzir em seus próprios laboratórios os resultados apontados nessa pesquisa.

Material para jornalistas

Na edição impressa de 30 de janeiro, que já estava disponível na versão online desde o dia anterior, foram publicados também, além dos dois trabalhos comandados por Obokata, outros dois textos, os quais serviram como subsídios didáticos para toda a divulgação realizada pela imprensa internacional: a reportagem: ”Banho ácido oferece caminho fácil para células-tronco“, e o artigo opinativo “Potência desencadeada“, de autoria deAustin Smith, pesquisador do Instituto de Células-Tronco da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

Textos como esses passaram a ser cada vez mais importantes para os jornalistas poderem entender melhor o que é relatado pelos cientistas nos chamados papers, que são os artigos científicos. Também em linguagem mais didática ou menos técnica que a dos artigos científicos, os artigos opinativos servem geralmente como subsídio para dar a posição isenta e independente de um especialista não envolvido com a pesquisa publicada.

Além do título e das primeiras frases, são poucos os trechos mais otimistas e pouco relativizadores dessa reportagem publicada na própria Nature em 30 de janeiro. Por outro lado, não faltaram no artigo opinativo de Austin Smith afirmações muito otimistas em relação à eficácia da técnica proposta nos dois estudos.

Divulgação otimista

É geralmente das próprias revistas científicas a responsabilidade final pelos títulos e subtítulos de suas reportagens e dos artigos opinativos sobre seus papers. No entanto, Smith certamente não teria o que reclamar do título “Potência desencadeada”. Para um especialista que, em princípio, não tem envolvimento com os dois trabalhos por ele analisados, seu texto é repleto de afirmações assertivas demais e sem as devidas ressalvas para a necessidade de os resultados serem reproduzidos em outros laboratórios, como mostra o trecho a seguir.

A descoberta inesperada de que um estímulo físico pode desencadear a reversão da diferenciação celular para um estado de potência irrestrita abre a possibilidade de obtenção de células-tronco específicas para tratamento de doenças por meio de um procedimento simples, sem manipulação genética. (…) No entanto, eles [Obokata e colegas] estabeleceram um novo princípio: um estímulo físico pode ser suficiente para desmembrar os circuitos de controle de genes e criar um estado ‘plástico’ do qual pode rapidamente ser desenvolvido um nível de potência antes inatingível.

Não se trata aqui de apontar desonestidade por parte de Smith. É possível até que ele realmente tenha acreditado na efetividade das alegações de Haruko Obokata e seus colegas. Não cabe, portanto, nenhuma exigência de explicação por parte dele, principalmente agora, por não haver ainda qualquer resultado das apurações em curso. Mas cabe certamente enfatizar que as coisas seriam muito melhores se a Nature e todos os periódicos tivessem e explicitassem seus critérios editoriais para publicar reportagens e opiniões de especialistas.

Lição esquecida

A pergunta que não quer calar, porém, é como foi possível o caso Okobata ter acontecido após o lamentável episódio que envolveu em 2004 outra consagrada revista, a Science, editada pela Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS). Naquele ano aconteceu a divulgação, também por meio de dois artigos nesse periódico, da falsa clonagem de células-tronco embrionárias humanas pelo sul-coreano Hwang Woo-suk, então professor da Universidade Nacional de Seul.

No âmbito da Science, o desfecho desse caso se deu com a “Retratação editorial”, assinada por Donald Kennedy, editor-chefe da revista, que fez uma breve síntese do relatório da auditoria da universidade, informou que os dois artigos de Hwang deveriam ser considerados inválidos e pediu desculpas pelo tempo que os revisores científicos “e outros” perderam avaliando os dois papers, assim como pelo tempo e pelos recursos que a comunidade científica gastou tentando reproduzir os resultados divulgados pela revista. (A revista mantém uma página com essa retratação e outros documentos em seqüência cronológica.)

Efeitos colaterais

Mas não houve nenhuma menção sobre o governo da Coréia do Sul, o qual, acreditando não só nos dois artigos publicados pela Science, mas principalmente na sua repercussão internacional turbinada pela estratégia midiática da revista, ter investido US$ 65 milhões no laboratório do pesquisador e reservado outros US$ 15 milhões do Ministério da Saúde e do Bem-Estar Social para a criação do Centro Mundial de Células-Tronco.

Uma coisa, e perfeitamente aceitável, é os periódicos entenderem que seus papers são mais importantes que suas reportagens e seus artigos opinativos. Outra coisa é uma revista científica agir como se esses dois gêneros textuais não passassem de meros instrumentos para manipular a imprensa e a opinião pública. É o que fazem parecer, no final das contas, algumas atitudes editoriais.

Fora, imprensa!

E, por falar em Hwang e na imprensa, vale lembrar de um dos episódios desse caso no final de 2005, quando o assunto estava fervendo, que foi registrado pelo jornalista Marcelo Leite em seu comentário “Células de decepção em massa“, na Folha de S. Paulo:

Nos mesmos dias em que pipocava o escândalo, um grupo de bambambãs da biotecnologia publicou uma carta no sítio http://www.sciencexpress.org defendendo, com palavras escolhidas a dedo, o afastamento da imprensa leiga. ‘Acusações feitas pela imprensa sobre a validade dos experimentos publicados na Coréia do Sul são, em nossa opinião, mais bem-resolvidos na comunidade científica’, escreveram os oito autores da correspondência. Entre eles estão Ian Wilmut e Alan Colman, dois dos “pais” da ovelha Dolly. (…) Na hora do oba-oba, a imprensa veio bem a calhar, pois ajudou a aprovar verbas para pesquisa. Na hora em que essa mesma imprensa lanceta o tumor, pedem que se afaste para que a comunidade científica enfim cumpra a sua obrigação, tendo já falhado uma vez.

Curiosamente, Austin Smith, autor do artigo “Potência desencadeada”, de 30 de janeiro deste ano, foi também um dos cientistas que assinaram essa carta que demonstrou uma forma realmente desastrosa de lidar com a opinião pública (“Células-tronco embriônicas humanas“, ScienceExpress, 13/12/2005)

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Mauricio Tuffani é jornalista