Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Em busca do cotidiano

Quando um jornal como o espanhol El País se dedica a aplaudir, em sua cobertura, manifestações sociopolíticas tão distintas como as que observamos na Venezuela e Ucrânia, pensamos que se trata de um periódico diretamente atrelado aos interesses sociais. Mas, uma leitura mais atenta tende a demonstrar uma identificação do diário com uma ideologia europeia, liberal, a sacramentar a ideia de democracia liberal comum ao bloco econômico do Velho Mundo. E a maneira como isso se dá demonstra não somente a imagem que se faz da América Latina, mas, nas mesmas proporções, as perspectivas de um país em crise econômica frente à possibilidade de sua salvação.

Para o El País, existe, sim, pecado ao sul do Equador. Ao fazer uma cobertura de duas páginas sobre os acontecimentos recentes da Venezuela (veja “Capriles pierde protagonismo como líder de la oposición de Venezuela” e “Una protesta multidinaria contra la represión recorre las calles de Caracas”, sendo uma delas de jornalismo opinativo [“¿Qué está em juego em Venezuela?”], o tabloide insiste na ideia de atropelo dos pressupostos mais democráticos, valendo-se de manobras da constituição venezuelana para a perpetuação de um regime político nem tão hegemônico assim. Para conferir solidez às suas argumentações, insiste em expor uma aproximação de Chávez e, agora, Maduro, com a mais que pecaminosa ilha socialista da América Central. Esta, por sua vez, é retratada somente como autoritária e caudilhista – percebe-se que o eixo das argumentações é essencialmente o da democracia.

Para o leitor espanhol mediano, especialmente aquele que não tem qualquer identificação com a América Latina, trata-se da descrição de um lugar distante. As ex-colônias padeceriam de algum tipo de doença a mantê-los alheios de qualquer possibilidade de saúde democrática, com regimes políticos a funcionarem com instituições políticas plenas, legítimas, saudáveis, manifestando-se de maneira livre a cada eleição. Aliás, aqueles países, como o próprio Brasil, quando produzem algo parecido com isso, tendem a apresentar como resultado a expressão de ícones da política, mais que propriamente políticos, cuja imagem de salvador, de modernizador de um sistema político, se torna proeminente, como no caso de Lula, no Brasil.

O socialismo que “nunca foi”

Logo, seguindo o raciocínio da leitura desatenta, a sociedade venezuelana estaria apenas vivendo o cotidiano de negação de um sistema político que apresenta o gene da falência por não ser democrático, por não possuir algumas das tradicionais, e maduras, instituições políticas vistas em alguns lugares do mundo, como, por exemplo, e não por acaso, na Europa. Para mim, um latino-americano recém-instalado na Espanha, transmite-se a impressão de que todos querem ser europeus.

O fato se torna ainda mais curioso quando, na mesma edição do El País, encontra-se uma cobertura especial dos acontecimentos de Kiev [primeira página: “La calle derriba el régimen ucranio”; “Maidán toma el poder em Ucrania”; “Londres y Berlín reclaman al FMI ayuda para el nuevo régimen de Kiev”; “El Pueblo invade la mansión de Yanukóvich y descubre um campo de golf y um zoológico”; “Del Maidán al caos”; “El portazo a Europa acaba com la presidência de Vitor Yanukóvich”; “Por qué teme Putin al Maidán”: http://elpais.com/buscador/e http://elpais.com/tag/fecha/20140222/]. Novamente, valoriza-se o povo ucraniano e a sua insatisfação. O tom, no entanto, adquire contornos de filia ao Velho Mundo ao se perceber que a orientação das coberturas jornalísticas se encontram na polarização Rússia-União Europeia. Segundo o entendimento do El País, os ucranianos não dizem não a Moscou, a Putin, dizem sim à Comunidade Europeia – um sim que deveria ter sido proferido há três meses, quando a decisão do presidente Yanukóvich foi de alinhamento quanto à política econômica russa.

Assim, os ucranianos se libertam. Aliás, isso estava escrito, pois, afinal de contas, são europeus. Está em seu DNA. Portanto, recorrem à União Europeia para a sua salvação, para que a rotina democrática volte sem quaisquer problemas. Eles, definitivamente, podem participar desse cotidiano sociopolítico e, por conseguinte, negar o atraso russo, identificado até os dias de hoje, com o socialismo que “nunca foi”. Na Ucrânia, quem fala, é o povo que vai às ruas. E, por sua vez, são as ruas que depõem o presidente. Dê à Ucrânia o que é da Ucrânia.

Direcionando os olhares dos jornalistas

E à Venezuela, o que será dado? Os venezuelanos reivindicam uma democracia ao dizer não a um regime político que somente se faz visível nas páginas do tabloide espanhol por seu alinhamento com o autoritarismo cubano. O que resta a eles? O não? Isso condiciona um sim?

O aceno de “seja bem-vindo” dado pelo El País à Ucrânia, sem sombra de dúvidas, significa uma chancela, mínima que seja, à Comunidade Europeia. Mas, definitivamente, falamos de uma Espanha em crise, com o surpreendente índice de desemprego a atingir um em cada quatro cidadãos. Quando se pensa no tempo em que um espanhol passa procurando emprego, estes números se tornam ainda mais assustadores: um ano (ver aqui).

Mas, apesar disso, trata-se de um país que tem um orgulho: o de pertencer a uma comunidade socialmente e politicamente consolidada no globo terrestre. Tenho a certeza de que essa Espanha tem consciência de sua crise. Mas, questiono-me até que ponto ela tem consciência de sua superação. A certeza, então, é de que não são latino-americanos em sua conturbada rotina democrática. Então, por que a crise? O questionamento surge principalmente ao se pensar na forma como esta Espanha pode se amparar no restante da Europa. A impressão que fica é a de que vangloriar a União Europeia por meio dos aplausos à sociedade civil ucraniana é, na verdade, um desesperado pedido de socorro. Enquanto isso, todos voltam à sua rotina.

Enfim, a maneira como as notícias encontram-se relacionadas no jornal diário permite o lançamento de dúvidas quanto à forma como é abordado algo, para os espanhóis, comum, como a União Europeia. Resta, então, o questionamento sobre até que ponto esta concepção não é determinante no momento em que determinadas pautas jornalísticas são tratadas, direcionando os olhares dos próprios jornalistas e, por conseguinte, dos leitores.

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Wallace Faustino da Rocha Rodrigues é professor em Salamanca, Espanha