Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O primeiro jornal do Brasil?

O escritor Angelo Trento menciona em seu livro “Imprensa Italiana no Brasil – Séculos XIX e XX”, publicado no fim do ano passado, a existência de um misterioso jornal em italiano que teria circulado no Rio, em pleno século XVIII, “La Croce del Sud”. Se a informação for correta, poderá provocar uma profunda revisão na história da imprensa brasileira, que ignora completamente a existência dessa folha.

Até hoje, historiadores debatem se o primeiro jornal brasileiro pode ser considerado o “Correio Braziliense”, editado em Londres a partir de junho de 1808, ou a “Gazeta do Rio de Janeiro”, lançada três meses depois, em setembro desse mesmo ano, mas impressa no Brasil. Todos eles concordam, porém, que a primeira folha é de 1808, ano considerado o marco zero da história da imprensa brasileira, cujo bicentenário foi comemorado em 2008.

Há também divergências sobre qual foi a primeira tipografia instalada na época da colônia. Alguns pesquisadores afirmaram que em 1707 funcionou, por pouco tempo, um prelo em Pernambuco, logo desativado, fato posto em dúvida pela maioria dos historiadores. Com certeza, sabe-se que uma tipografia foi instalada no Rio em 1747, pelo português António Isidoro da Fonseca, que foi obrigado pela Coroa a mandá-la de volta a Portugal. Mas não há referências a nenhum outro prelo funcionando no Rio até a chegada da família real e a instalação da Impressão Régia em 1808.

A publicação precisaria ter sido impressa em uma tipografia, dos padres capuchinhos ou não, da qual não há, até hoje, referência

Para Trento, no entanto, o primeiro jornal não foi nem o “Correio Braziliense” nem a “Gazeta do Rio de Janeiro”. Escreve ele: “A imprensa em língua italiana, porém, manifestou-se com grande antecedência, precedendo e muito o nascimento da primeira gazeta em português, que só surgiu no início do século XIX. Graças à iniciativa de dois frades capuchinhos (Giovan Francesco da Gubbio e Anselmo de Castelvetrano) veio à luz, no Rio de Janeiro, em 1765, o periódico mensal ‘La Croce del Sud’, que trazia, em suas páginas internas, uma pequena seção em português.” Ele assegura que “de tal órgão católico, de vida provavelmente muito curta, não ficaram vestígios materiais, mas sua existência é testemunhada por referência esparsas e continuadas”. Trento não diz quais seriam essas referências esparsas e continuadas. Registra também outro jornal italiano que teria circulado no Rio em 1836, “La Giovine Italia”.

Ele não é primeiro escritor a mencionar “La Croce del Sud”. A primeira informação sobre esse jornal é, provavelmente, de Giuseppe Fumagalli numa obra sobre a imprensa italiana no exterior, escrita por ocasião da Feira Internacional de Milão de 1906. Essa informação foi repetida durante mais de um século por vários autores sobre a imigração italiana.

Edição única

Um desses escritores, Franco Cenni, embora pareça acreditar que essa folha realmente existiu, teve o cuidado de reconhecer em “Italianos no Brasil: Andiamo in ‘Merica”, de 1960, livro hoje clássico sobre a imigração, que há “quem afirme, contra as circunstanciadas declarações do professor Antonio Piccarolo, em sua obra ‘Gli Italiani nel Brasile’, de 1922, que ‘La Croce del Sul’ e ‘La Giovane (sic) Italia’ pertenceram apenas ao reino da fantasia, ou melhor, nunca existiram”. Nessa obra mencionada por Cenni, o socialista Antonio Piccarolo, um dos poucos jornalistas antifascistas italianos de São Paulo nos anos 1920 e 30, diretor de várias publicações, afirma que um missionário, o padre Luigi Piazza, morto em 1908, lhe mostrou um exemplar do jornal, que lhe fora entregue pelo prefeito da ordem, padre Fedele Montesano.

Mas hoje não existem vestígios sobre “La Croce” nem outras referências a essa folha fora das obras que tratam da imigração italiana. Todos os historiadores brasileiros da imprensa são unânimes em afirmar que de 1500 a 1808 não foi publicado nenhum jornal no Brasil – nem em português, nem em italiano, nem em nenhuma outra língua. Na verdade, e surpreendentemente, eles não chegaram a tomar conhecimento das várias referências a “La Croce del Sud” nem sequer para desmenti-las. É como se os pesquisadores sobre a imprensa brasileira e os autores sobre a imigração italiana trabalhassem em universos paralelos e diferentes, ignorando-se mutuamente.

A existência desse jornal, porém, é altamente improvável. Além de faltarem provas materiais, teria que ter sido impresso numa tipografia, dos padres capuchinhos ou de outro impressor, da qual não existe, até hoje, nenhuma referência; não consta de nenhum documento da época. O governo de Portugal não teria permitido sua instalação e funcionamento, assim como, duas décadas antes, proibiu a tipografia de António Isidoro da Fonseca.

A respeito do jornal “La Giovine Italia”, que teria circulado no Rio em 1836, não há nenhuma referência nas detalhadas obras sobre a imprensa carioca de Helio Vianna e de Gondim da Fonseca. Mas pode ter existido. “La Giovine Italia” era o nome de um movimento político fundado por Giuseppe Mazzini, o ideólogo da unificação italiana, em 1831, quando estava exilado em Marselha. Alguns de seus seguidores foram até o Rio da Prata e de lá ao Rio de Janeiro, e fundaram várias associações La Giovine Italia e um jornal com esse nome. Franco Cenni diz que foi impresso numa velha máquina e com alguns poucos tipos trazidos de Montevidéu. Segundo o pesquisador brasileiro Eduardo Scheidt, da Universidade de São Paulo, existem um manifesto-programa do jornal e duas edições.

Mas a respeito, especificamente, de “La Croce del Sul”, ainda o mais prudente é parafrasear a declaração transcrita por Cenni de que esse jornal pertence apenas ao reino da fantasia, ou melhor, nunca existiu. Até prova em contrário.

Em conversa recente, depois de escrita a resenha sobre o livro, Angelo Trento disse ao autor destas linhas que se lembra de ter lido que “La Croce del Sud” foi um jornal manuscrito, do qual teria sido divulgado um único número, assim como teria circulado só um número de “La Giovine Italia” – embora Scheidt tenha mencionado a existência de duas edições. As dúvidas continuam.