Em 26 de fevereiro último, o Jornal da Band veiculou uma reportagem denunciando a “fraude que criou uma tribo de falsos índios”, dando origem à Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. Numerosos dados equivocados foram apresentados na matéria, que sustenta, por exemplo, que a Constituição Federal proíbe a “ampliação de áreas indígenas” – como se sabe, a lei maior determina o reconhecimento pelo Estado dos direitos territoriais indígenas. Nenhum índio foi ouvido pela reportagem; dos sete entrevistados, ao menos três são pretensos proprietários de áreas no interior da TI, o que não é informado aos espectadores. Chega-se a insinuar que um criminoso colombiano estaria “por trás” da mobilização indígena pela demarcação de seu território, em uma conspiração internacional para arrebatar terras a produtores rurais brasileiros.
A reportagem enviesada debruça-se sobre um contexto de intenso conflito territorial e de violência contra os Tupinambá. Em 28 de janeiro de 2014, agentes da Força Nacional de Segurança Pública e da Polícia Federal instalaram uma base policial na aldeia Serra do Padeiro, no interior da TI. Com isso, tratavam de consolidar sua presença na área – onde atuavam desde agosto do ano anterior, por determinação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo –, dando início à ocupação militar permanente do território indígena. No mês seguinte, cerca de 500 soldados do Exército deslocaram-se à região, por ordem da presidenta Dilma Rousseff, para “garantir a lei e a ordem”, “pacificando” as relações entre indígenas e não-índios contrários à demarcação da TI. Os indígenas passaram a ser vigiados ostensivamente e tiveram lugar ações de reintegração de posse violentas.
Na tarde de 8 de novembro de 2013, três indígenas do povo Tupinambá foram assassinados em uma emboscada, no interior da TI. As vítimas – Aurino Santos Calazans (31 anos), Agenor Monteiro de Souza (30 anos) e Ademilson Vieira dos Santos (36) – foram atacadas a tiros e golpes de facão por quatro homens, que se aproximaram em duas motocicletas. A esposa de Aurino também estava no local, mas conseguiu escapar. Ela descreveu um ataque brutal. Um dos indígenas foi encontrado quase decepado, apresentando sinais de tortura (foi chicoteado) e muitos ferimentos provocados por facão.
Desde o início dos anos 2000, os Tupinambá vêm demandando do Estado brasileiro o reconhecimento das terras que tradicionalmente ocupam e, por meio de ações conhecidas como “retomadas de terras”, vêm tratando de recuperar as áreas que lhes foram tomadas. A penetração massiva de não-indígenas no território Tupinambá teve início no final do século 19, quando a região tornou-se a principal fronteira agrícola do estado da Bahia, com o estabelecimento da cultura do cacau. Entre os anos de 1920 e 1940, esse processo se intensificou. Os indígenas que não migraram para as zonas urbanas mantiveram-se em pedaços de terra muito diminutos ou passaram a trabalhar em fazendas de cacau, em condições extremamente precárias, em alguns casos, inclusive como mão-de-obra escrava.
O processo de identificação da TI Tupinambá de Olivença – que se estende por porções dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una, e onde vivem cerca de 4.700 indígenas, segundo dados da Fundação Nacional de Saúde para 2009 –, teve início em 2004, como resultado de prolongada pressão por parte dos indígenas. Cinco anos depois, a Fundação Nacional do Índio delimitou a TI em cerca de 47 mil hectares. Descumprindo os prazos estabelecidos pelo Decreto 1.775/96, o ministro da Justiça ainda não assinou a portaria declaratória da TI, para que o processo então se encaminhe para as etapas finais. Em razão da omissão governamental, o conflito se acirrou. Em 14 de agosto último, um veículo que transportava estudantes indígenas foi alvejado, em uma emboscada, deixando dois jovens feridos. Nas semanas subsequentes, veículos de órgãos públicos e casas de indígenas foram incendiadas, em protesto contra a demarcação.
Pouco mais de dois meses antes dos assassinatos dos três Tupinambá, referido acima, editorial do jornal A Região, de Itabuna, publicado em 31 de agosto, arremetia contra o reconhecimento dos direitos territoriais dos índios: demarcar a TI equivaleria a “entregar 30% do território de Ilhéus a malandros que nunca foram índios”. “Nem é preciso olhar muito para ver que a maioria dos que se dizem tupinambá não tem qualquer característica física de índio. O chefe do bando, por exemplo, Babau, está mais para vocalista do Olodum que para cacique indígena. Posso dizer que sou mais índio que ele.” Nessa passagem, o editorialista refere-se a Rosivaldo Ferreira da Silva (Babau), um dos caciques Tupinambá, e alude ao fenótipo de parte dessa população – decorrente de seu prolongado contato com a sociedade envolvente e dos muitos casamentos interétnicos ocorridos na região – para negar a identidade étnica dos Tupinambá.
Após descrever o que seria a dramática situação dos pretensos proprietários de terras da região – vítimas da “justiça caolha”, da “suspeita Funai” e do “governo esquerdóide Dilma” –, o autor conclui, com a mesma frase da manchete: “Só restam as armas”. Na mesma época, um outdoor instalado na região acusava os índios de “genocídio” e trazia a imagem de dois homens sem rosto apontando armas, acima dos dizeres: “Responda governador antes que seja tarde demais”. Como se verá, a criminalização dos Tupinambá pela imprensa deita raízes no passado – remontando a um episódio de resistência indígena ocorrido nas décadas de 1920 e 1930 – e, contemporaneamente, tem implicações diretas no processo de demarcação.
Flagelo perturbador da ordem pública
“Criminoso perigosíssimo e hediondo”, “facínora”, “repelente criminoso”, “o terror de Olivença”, “truculento cafuzo”, “bandido” e “bandoleiro”. Essas foram algumas das expressões utilizadas por João da Silva Campos, autor da Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus (escrita entre os anos de 1936 e 1937, e publicada em 1947), para se referir ao indígena Marcellino José Alves, principal personagem do que ficou conhecido como a “revolta do caboclo Marcellino”. Entre os últimos anos da década de 1920 e o final da década de 1930, com o intuito de barrar o avanço dos não-índios sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos Tupinambá, Marcellino organizou a resistência indígena e, em decorrência disso, foi perseguido e preso em diferentes ocasiões.
Na época, teve lugar uma intensa campanha de criminalização contra os indígenas levantados, operada em grande parte pela imprensa regional. Em 1929, os jornais de Ilhéus começaram a noticiar, de forma sensacionalista e tendenciosa, supostos atos de vandalismo que estariam sendo praticados por Marcellino e seus companheiros. As denúncias eram unilateralmente apoiadas em relatos de fazendeiros, sustentando que os indígenas estariam percorrendo a região incendiando fazendas, destruindo plantações e disseminando o terror entre os pacatos moradores da área.
Ainda em 1929, foi noticiada a primeira prisão de Marcellino, acusado, entre outros crimes, de assassinato. A 5 de novembro, lia-se no Correio de Ilhéus: “Comunicam-nos de Olivença que acaba de ser preso pela polícia e paisanos o caboclo Marcellino pronunciado por crime de morte e que ali estava cometendo grandes depredações auxiliado por irmãos e outros caboclos. Este criminoso constituiu-se um permanente flagelo e perturbador da ordem pública. (…) É uma notícia que vai alegrar a todos que tinham conhecimento dos desatinos praticados pelo bandido (…)” (português atualizado).
Frequentemente, Marcellino era comparado ao célebre bandido social Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, que “aterrorizava” os sertões nordestinos. Tornou-se, também ele, um famigerado, realizador de inigualáveis “façanhas criminosas”, como se lê no Diário da Tarde, também de Ilhéus, na edição de 10 de junho de 1936. Na mesma matéria, Marcellino é referido como o “homem que se fez bugre”, construção discursiva que busca enquadrá-lo em um “estágio evolutivo” atrasado. “Bugre”, neste caso, figura como termo análogo a expressões como “índio selvagem” ou “gentio bravo”, frequentemente mencionadas em documentos do século XIX para designar a “praga” que infestava as matas do sul da Bahia: as “hordas indígenas” que, resistindo a ingressar no “grêmio da civilização”, impunham óbices ao “desenvolvimento” da região.
Nesse quadro, eram constantes os alarmes falsos alardeando a captura e a morte de Marcellino. Os boatos fervilhavam, alimentados pela pródiga cobertura jornalística, que, de tempos em tempos, anunciava eminentes “invasões” de Marcellino e seu “bando” à vila de Olivença. Em 16 de janeiro de 1936, o Diário da Tarde referiu-se a um desses boatos, endossando-o: “Circulou ontem na cidade, quando se realizava o pleito municipal, uma notícia alarmante. O caboclo Marcellino, o já bastante famoso ‘homem que se fez bugre’, aproveitando o fato de estar Olivença desguarnecida, com a vinda para o Pontal [de Ilhéus] de muitos cidadãos eleitores, ameaçava assaltar aquela localidade”.
O indígena era associado agora não apenas a Lampião, mas também ao líder comunista Luís Carlos Prestes, no contexto da repressão à “ameaça vermelha”. Em 1937, Marcellino e ao menos mais três indígenas, ao lado de alguns não-índios, foram indiciados como comunistas. Enviado ao Rio de Janeiro, foi condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional, mas libertado ainda no mesmo ano, por não ter culpa formalizada. Sabe-se que então retornou a Ilhéus e que uma autoridade policial local aconselhou-o a não permanecer na região, argumentando que sua vida corria perigo. É então que os arquivos silenciam sobre seu paradeiro.
Caboclos fantasiados de índios
Uma análise da cobertura midiática da disputa contemporânea em torno do território Tupinambá indica que a ampla maioria das peças jornalísticas alinha-se com a perspectiva de sujeitos e grupos contrários à demarcação, reverberando seus discursos. Nesse contexto, a produção jornalística vem sendo acionada inclusive por juízes, em suas decisões, para “comprovar” práticas delituosas atribuídas aos índios. Ao conceder liminar de interdito proibitório a um fazendeiro em face dos Tupinambá, em 2006, uma juíza federal em Ilhéus justificava que as “ameaças” de que eram acusados os indígenas constituíam “fato notório, conforme amplamente divulgado recentemente na imprensa escrita, falada e televisionada”.
Jornais como Agora e A Região, de Itabuna, trazem reportagens claramente editorializadas – não é difícil encontrar em seus textos afirmações preconceituosas em relação aos indígenas e se notam, também, procedimentos como a veiculação de informações não checadas. Em 27 de fevereiro de 2010, A Região falava em “bandidos que se dizem índios” e “caboclos fantasiados de índios”. Já em 11 de março, quando o cacique Babau foi ilegalmente preso, o jornal comemorou: “Foi de alívio o clima no sul da Bahia, ao receber a notícia de que o suposto cacique Babau (…) foi preso (…). Ele estava sendo caçado desde agosto do ano passado”.
Emissoras de rádio têm sido ainda mais virulentas. Rivamar Mesquita, apresentador do programa Novo Amanhecer, da Rádio Jornal, de Itabuna, sugeriu a realização de emboscadas contra os índios, conforme se lê em documento da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia datado de 2010. Notícias atacando os indígenas são constantemente veiculadas também pela rádio Sideral, de Buerarema – cujo diretor, Carlos Freitas, tomou posse em 19 de dezembro último como um dos diretores da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias. No site da emissora, notas aludem aos “supostos índios” e às “barbaridades” que teriam sido por eles cometidas.
No que diz respeito à imprensa de circulação nacional, duas reportagens tornaram-se notórias, pela profusão de erros factuais e afirmações preconceituosas: “O Lampião tupinambá”, publicada pela revista Época em 2009, e “A farra da antropologia oportunista”, publicada pela revista Veja em 2010. Na última, os índios da Serra do Padeiro são referidos como “neotupinambás” e como “os novos canibais”. Em 17 de julho de 2010, o ex-diretor de redação da Época, Paulo Moreira Leite, publicou no portal da revista na internet uma inventiva nota afirmando que estava em elaboração, pela Funai, um decreto anulando a demarcação da TI, após o órgão haver constatado “que os estudos antropológicos que identificam as terras como sendo dos tupinambás eram grosseiramente falsificados”. O texto dizia ainda que o cacique Babau estava prestes a perder “sua carteira de identidade indígena”. Como se sabe, nada disso ocorreu – e, se houvesse ocorrido, tratar-se-ia de violações grosseiras ao ordenamento jurídico brasileiro.
Demarcação traumática
Para indicar alguns mecanismos manipulatórios adotados pela imprensa, interessa analisar a produção de um jornal de circulação estadual, A Tarde, de Salvador, no qual o engajamento com os setores contrários à demarcação é menos caricato, mas, ainda assim, evidente. Os textos caracterizam os índios de maneira preconceituosa – por exemplo, ao falar em “mestiços que se intitulam índios tupinambás” (26 de março de 2010). Fazendo as vezes de juiz, apresentam os indígenas como culpados de crimes ainda não julgados. Também veiculam as versões de fontes envolvidas no conflito como se fossem os fatos.
Em um exemplo claro de seu engajamento na disputa, em 14 de junho de 2009, A Tarde publicou reportagem em destaque (texto de página inteira, em um domingo) sobre a demarcação da TI Kiriri, no nordeste da Bahia. Tratava-se de uma matéria “fria” – para usar o jargão jornalístico, sem “gancho” a lhe atribuir atualidade e justificar sua publicação –, que cumpria um papel claro: indicar o caso Kiriri como um exemplo a ser evitado no sul da Bahia. Intitulada “Demarcação traumática”, a matéria trazia os seguintes dizeres, em destaque: “Caso de Banzaê expõe os riscos que rondam os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, no sul”.
“Ataque de índios deixa 4 feridos e 3 desaparecidos”, lê-se em manchete de A Tarde de 26 de fevereiro de 2010, em referência ao conflito ocorrido na fazenda Serra das Palmeiras nos dias 23 e 24 do mesmo mês, quando agentes da Polícia Federal e fazendeiros tentaram retirar à força os indígenas que estavam na área, que fora por eles retomada no dia 19. Como se vê, em lugar de atribuir as informações a fontes, o jornal afirma categoricamente. Já no corpo do texto, descobrimos que a informação baseia-se em relato de testemunha não identificada, que fala ainda em dois mortos. Apenas no último parágrafo o leitor é informado, a partir de declaração do delegado da Polícia Civil de Buerarema, sobre o fato de não terem sido registradas na polícia denúncias de morte ou desaparecimento. Além disso, a expressão “ataque de índios” é eficaz quando se trata de evocar construções históricas em torno da índole “selvagem” que, segundo certo pensamento, seria inerente aos indígenas.
Em reportagem de 27 de fevereiro, o jornal recua – mas não retifica o que escrevera na véspera – e fala em “pelo menos um desaparecido”. O “terror” vivido na mão dos índios ganha em densidade dramática: “Foi um massacre, uma carnificina. Fomos cercados pelos índios sem chance de defesa, estávamos despreparados. Nunca vi nada igual”, diz “um dos baleados”, que, conforme apurou o jornal junto a sua esposa, “teria sido atingido pelos disparos quando tentava dizer aos índios que se rendia” e sobreviveu “por milagre”. Ainda segundo a mulher, “mesmo à noite, o céu ficou claro com tantos tiros”. E o pior ainda estaria por vir, já que, segundo a reportagem, os índios ameaçavam “invadir” o centro de Buerarema – “ainda hoje”. Impossível não ouvir ecos, nesse episódio, do “medo” que tomou conta de Olivença em janeiro de 1936, quando correu o boato de que Marcellino “invadiria” a vila para expulsar os não-índios. Nos dois casos, os boatos foram suficientes para mobilizar as forças policiais.
Ao assumir como verdadeiras as declarações concedidas por fontes envolvidas no conflito, o jornal exime-se de apurar, a ponto de veicular informações jurídicas equivocadas, que poderiam ser facilmente verificadas. Em reportagem de 2 de março de 2010, noticiando a permanência dos índios na Serra das Palmeiras, A Tarde conversa com um fazendeiro e informa que o fazendeiro “mostrou o interdito proibitório, documento que proíbe a demarcação da terra”. Como se sabe, “proibir demarcações” não está no escopo deste instrumento jurídico, já que o Estatuto do Índio (Lei nº6.001/73) veda a utilização de interditos possessórios contra a demarcação de Terras Indígenas.
Oferecendo uma cobertura parcializada e discriminatória, os veículos de comunicação hegemônicos vêm contribuindo para a cristalização dos estereótipos sobre os povos indígenas no senso comum. Como se viu, têm se esforçado para definir a disputa fundiária em favor dos setores contrários à demarcação da TI Tupinambá de Olivença, perpetuando, assim, as violações historicamente cometidas contra o povo Tupinambá.
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Daniela Fernandes Alarcon é jornalista (USP), mestre em Ciências Sociais (UnB) e pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Movimentos Indígenas, Políticas Indigenistas e Indigenismo (Laepi/UnB), desenvolveu pesquisa de mestrado acerca das retomadas de terras entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, disponível aqui. Patrícia Navarro de Almeida Couto é mestre em Ciências Sociais, com concentração em Antropologia (UFBA), pesquisadora associada ao Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB/UFBA) e professora no Departamento de Ciências Humanas e Filosofia (UEFS). Em sua pesquisa de mestrado (disponível aqui), investigou identidade e religiosidade dos Tupinambá da Serra do Padeiro