Este trabalho consiste em tentativa de compreender o florescimento de tabloides brasileiros como uma nova, grande e sustentável onda do que atualmente se tem denominado de “jornalismo popular”, mas que seria, de fato, o reaparecimento – com algumas variações em torno da fórmula original –, do jornalismo sensacionalista que remonta aos anos de 1830 e que foi chamado pelos estudiosos ora como penny press ora como yellow press e, no Brasil, de imprensa marrom. A análise está dividida em duas partes: a primeira, detendo-se na evolução dessa modalidade de “popularização” dos acontecimentos midiáticos. A segunda, um exercício de projeção teórico-deontológica: a penny press de hoje pode oferecer aos seus leitores mais do que os ingredientes tradicionais – crimes, fofocas e esportes –, pois entre as inovações já se encontra uma significativa dose de matérias de serviço. Porém, a principal indagação é: da mesma forma como esses jornais retratam a violência e se servem dela como um valor mercadológico, poderiam igualmente prestar um serviço à sociedade também difundindo valores de cultura de paz? Nesse caso, conclui-se que estariam, por força de um novo valor agregado, ultrapassando o seu papel de ser tão somente uma nova versão da rebatida fórmula do jornalismo de centavos.
O fenômeno na sua origem
Iremos considerar para o início desta reflexão os conceitos de penny press, yellow press, yellow journalism e imprensa marrom para, em seguida, fazermos uma aferição de como um fenômeno histórico está presente no atual mercado de notícias e, por fim, verificarmos – em termos de uma projeção teórico-deontológica –, as possibilidades de utilização do seu potencial para fins de difusão de valores, especialmente os de cultura de paz.
O que estamos designando de “jornalismo de centavos” corresponderia a uma tradução livre, para os dias de hoje, do que um dia foi a penny press, ou seja, uma modalidade de jornalismo que surgiu nos Estados Unidos na década de 1830 para atender a demanda, o gosto e o poder aquisitivo da classe trabalhadora (working class) e imigrantes, por iniciativa de empresários que viam nessa prática um achado mercadológico e auto-sustentável, isto é, de forma a não depender, financeira e editorialmente – como o fazia a “grande imprensa” da época –, de partidos políticos (party press).
Penny é a menor divisão da moeda inglesa, a libra esterlina. A expressão que se criaria no imaginário anglo-saxão, penny press, corresponderia a uma imprensa de centavo, tão acessível e tão popular, a ponto de ao custo de dois centavos ser possível remeter-se um jornal para a leitura de alguém. Não se tratava, porém, de uma imprensa de assinatura, mas de um filão cuja fórmula consistia exatamente em difundir notícias curtas e de interesse geral, em contraste com as notícias de caráter ideológico e analíticas, típicas da imprensa criada para difundir ideais político-partidários. A penny press surgia para a venda imediata, direta e prática ao consumidor, por meio dos jornaleiros, cujo ícone, no sentido iconográfico mesmo, veio a ser o de uma criança com a boca escancarada, apregoando: “Extra, extra!” [Jornaleiros, ou seja, ‘pagos à jorna’ (jornada); ardina (étimo português)].
A penny press é um fenômeno bem datado, referenciado em dicionários de comunicação e constantemente citado pelos que têm pesquisado as teorias do jornalismo, como o professor Jorge Pedro Sousa [Construindo uma teoria do jornalismo. Em: www.bocc.ubi.pt, p. 9], autor de várias obras nesse campo. E é ele que vai fazer sobre essa modalidade de imprensa o seguinte registro:
A imprensa noticiosa tem raízes na primeira geração da imprensa popular que desponta nos Estados Unidos nos anos vinte e trinta do século XIX e na imprensa de negócios que floresce a partir do século XVIII. Essa primeira vaga de jornalismo predominantemente noticioso (penny press) vai-se impor ao jornalismo predominantemente opinativo (party press) até ao final do século XIX, motivada, entre outros factores, pelo aumento da informação circulante devido à generalização do telégrafo e à melhoria dos transportes e das vias de comunicação. Em Portugal, a fundação do Diário de Notícias, no fim de 1864, assinala precisamente essa viragem noticiosa do jornalismo.
Penny press:literalmente, imprensa de centavos [TRAQUINA, N. Teorias do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2005, p. 50, “O novo conceito de produção jornalística pode ser exemplificado com o New York Sun, primeiro jornal de massa que surge em 1833, o New York Herald, criado em 1835, e o La Presse, lançado em Paris em 1836]. No plural, porque, enquanto os jornais tradicionais eram vendidos por seis centavos, os ‘novos’ jornais eram vendidos pela metade, ou seja, três centavos, nos EUA. A designação penny press foi, portanto, pejorativa, preconceituosa, conotação para ‘imprensa barata’, jornalismo sem qualidade. Teria, já àquela altura, despontado a distinção entre ‘cultura de massa’ e ‘cultura de elite’, mais tarde presente nas análises dos pesquisadores que vieram mapear as características de um fenômeno mais amplo que veio a ser designado por indústria cultural, denominação preferida pelos pensadores da chamada “Escola de Frankfurt” em relação à expressão “cultura de massa”, por entenderem que a massa – amorfa e desprovida de subjetividade própria –, não era capaz de produzir cultura. E a própria cultura que lhe era atribuída era, na verdade, uma produção estruturada por um sistema dominante e capaz de impor um ethos já pronto para ser consumido de forma acrítica, algo totalmente inverso à ideia de uma sociedade auto-reflexiva e, consequentemente, autônoma e esclarecida.
De forma mais ampla, a reprodutibilidade técnica que assiste em quantidade e velocidade ao novo paradigma de produção, circulação e consumo de jornais viria a ser designada de yellow press, em analogia às ‘páginas amarelas’ dos anúncios comerciais em catálogos e listas, gênese das atuais listas telefônicas, cujo miolo ainda é impresso em papel barato, aliás, chamado de papel-jornal. O barateamento da produção e o próprio barateamento qualitativo dos conteúdos viriam, no entanto, ser fundamentais para o estabelecimento de uma ‘economia política’ capaz de assegurar a grande escala sem a qual não haveria sustentabilidade para um dos princípios mais elevados da democracia que é a liberdade de imprensa, conceito polêmico, pois ao mesmo tempo de dupla interpretação: liberdade de imprimir (print) e liberdade de publicar (press). O princípio da liberdade (freedom) de imprensa foi colocado por Thomas Jefferson (1743-1826) acima do valor dos próprios governos e, por si, constitutivo da democracia: “Se eu tivesse de decidir entre um governo sem imprensa e uma imprensa sem governo, eu não hesitaria um momento em escolher a segunda alternativa” (1787).
O fenômeno em sua expansão
A concorrência entre os jornais e, com ela, as estratégias para a conquista de fatias cada vez mais expressivas de leitores, têm levado a imprensa de massa desde os seus primórdios até os dias presentes a fazer uso intensivo da principal característica do sensacionalismo, que é o exagero. Como se a preferência por fatos dramáticos já não fosse por si uma tendência agonística do jornalismo, exponenciar os acontecimentos e as ações no que eles possam oferecer de dantesco e de grotesco tem sido uma prática constante, por vezes temperada com pitadas de erotismo e de outros apelos sensoriais, emotivos e psicológicos. Haveria (RABAÇA e BARBOSA: 424) duas categorias de sensacionalismo: o positivo e o negativo. O primeiro, referente ao exagero no tratamento jornalístico, por exemplo, com as “manchetes garrafais”; e o segundo, contendo “apelos e emoções destrutivos, geralmente de cunho sadomasoquista” [Cf. RABAÇA, Carlos Alberto e BARBOSA, Gustavo. Dicionário de Comunicação. Rio de Janeiro, Codecri, 1978, p. 424, verbete “Sensacionalismo”, por sua vez, remissivo a “Imprensa marrom” (p. 226), verbete vazio, pois remete a “Imprensa amarela”], procedimento característico do que propriamente se denominou, no Brasil, de imprensa marrom, por sua vez sinônimo de imprensa amarela (segue, na íntegra, o verbete correspondente” [Idem, p. 256]:
IMPRENSA AMARELA (jn): Imprensa sensacionalista. Expressão surgida nos Estados Unidos, em fins do século 19, no auge da competição entre o jornal New York World (de Pulitzer) e o Morning Journal (comprado em 1895 por Randolph Hearst), pela conquista dos leitores novaiorquinos. Surgiram nessa fase alguns dos elementos que lançaram as bases do jornalismo moderno: manchetes garrafais, artigos sensacionalistas, seções esportivas, numerosas ilustrações etc. O jornal World, concentrando esforços sobre o suplemento dominical, passou a estampar desenhos de Outcault (Yellow Kid) impressos em cor amarela, para atrair atenção do público. Os primórdios das Histórias em Quadrinhos estão, assim, vinculados também às origens do jornalismo sensacionalista. A competição entre esses dois jornais refletiu-se em inúmeros outros órgãos de imprensa, que levaram o sensacionalismo às últimas conseqüências, apelando para o escândalo, a intriga política, o achaque, a chantagem etc. No Brasil, diz-se mais freqüentemente imprensa marrom. Segundo Alberto Dines, esta expressão “foi cunhada pelo então chefe de reportagem do Diário da Noite, Francisco Calazans Fernandes, que sugeriu usar uma cor mais forte – o marrom – para designar ‘imprensa amarela’ (yellow press), expressão comum no jargão jornalístico ocidental. O DN passou a adotá-la, sendo logo seguido pelos demais jornais e jornalistas que deram cobertura à campanha e permitiram o seu êxito”.
A receita básica ainda está em pleno uso, se bem que sobrecarregada ainda mais em alguns dos seus elementos, como, por exemplo, as cores. Com o advento da impressão em off set e, mais recentemente, com o contributo de máquinas velocíssimas e digitais, muitas delas dispensando o antigo e demorado processo de revelação química de fotolitos e a retocagem dos mesmos, o colorido das páginas representa um atrativo a mais. A cor amarela, no entanto, ainda exerce uma predominância, ao lado do verde do alaranjado, por coincidência, as cores prediletas no planejamento de uma série de produtos industrializados, entre eles, refrigerantes. [O tabloide Aqui DF, de Brasília (R$ 0,50 – 28 páginas), apresenta com frequência em sua primeira página um terço da mesma em fundo amarelo, sobre o qual recai a principal manchete, geralmente dedicada a um crime. O amarelo é também a cor predominante na capa do Jornal na Hora H!(R$ 0,25)]
Em termos de conteúdos, as variações são poucas. Conforme ressalta Nelson Traquina (2005, p. 50) o surgimento da penny press implicou não só o aumento da circulação dos jornais, mas também a homogeneização de alguns fatores: a) conteúdos: notícias sobre fatos locais do cotidiano, processos de justiça, crimes, execuções, catástrofes e eventos extraordinários; b) rebaixamento de preços; c) público amplo e generalizado, ou seja, massivo; d) linguagem simples e acessível a pessoas de instrução escolar fundamental. Exemplifica como parâmetros desse então novo conceito de produção jornalística, o New York Sun, primeiro jornal de massa que surge em 1833, o New York Herald, criado em 1835, e o La Presse, lançado em Paris em 1836.
Há autores de várias épocas, como Frank Fraser Bond (1962) e Luiz Gonzaga Motta (2006), que enxergam na forma como o jornalismo sensacionalista narra os fatos um parentesco com as tramas teleológicas da literatura popular e do “fantástico” (na acepção do “conto maravilhoso”). [O “conto maravilhoso” é a categoria criada pelos formalistas russos para designar o trânsito dos personagens pelos mundos natural e sobrenatural, bem como pelas metaformas que assumem na prática de suas ações e respectivas consequências, boas ou más. Tal como é próprio dos atores das narrativas fantásticas, recebem dos seus criadores um destino conforme as suas ações, os jornalistas, no trato dos seus atores, também tenderiam a ser ou não justiceiros dos personagens envolvidos nas tramas ‘reais’. Em Brasília há um apresentador de um telejornal policialesco, que vibra e se exalta com o insucesso dos criminosos, fazendo uso da sentença “Como eu gosto de bandido burro”. Muito comum é também o uso de manchetes punitivas nas notícias de crimes publicadas pelos tabloides: “Mala levou bala”; ou, “Mala se deu mal”.] Bond se refere a uma certa “psicologia do público leitor” a ser atendida em seus “impulsos reprimidos ou frustrados” por relatos compensadores. O público estaria dividido em três categorias básicas: os intelectuais (grupo pequeno que tende para a crítica), os práticos (grupo envolvido com negócios e que não tem interesse em crítica ou arte) e os não-intelectuais (o maior de todos os grupos), que “lêem as revistas mais baratas, apreciam os espetáculos baratos e emocionam-se vivamente com os filmes de perseguição e aventuras”. Comparando os papeis do escritor e do jornalista perante os anseios dos públicos, Bond afirma: “Embora o novelista e o escritor tenham explorado esses princípios [o impulso de ação, o impulso de sexual e o impulso para o mundo do sonho], mais extensamente do que o jornalista, este nunca deve esquecer que seu público é o mesmo. Sua incumbência, como a do novelista, é interessar o leitor” [Opus cit., p. 80].
“Como pode o escritor satisfazer as necessidades desses grupos que, unidos, compõem a população nacional de leitores de jornais?”, indaga Fraser Bond, para em seguida, ele próprio comparecer com esta resposta: “Pode fazê-lo analisando seus gostos e necessidades e lembrando-se deles quando se aventura mesmo pelo mais simples noticiário”.
Motta, por sua vez, tem analisado ao longo de seus vários livros sobre teoria do jornalismo a presença do mito nas narrativas de fatos insólitos, cujo enredo se passa numa fronteira de encantamento em que o real parece inacreditável e o inverossímil se demonstra empírico. Essa comutação entre o real que parece fictício e a ficção com foros de realidade também encontra explicação nas reflexões de Adriano Duarte Rodrigues, no seu texto sobre “O acontecimento” [Trata-se do capítulo “O acontecimento”, texto de abertura do livro TRAQUINA, N. (Org.) Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”. Lisboa: Vega, 1993]. Ao propor uma equação segundo a qual os acontecimentos quanto mais improváveis mais midiáticos, Rodrigues conclui que a mídia cumpre uma função remitificadora do cotidiano. Estudioso dos faits divers [Faits divers: fatos diversos, em francês; features, em inglês. Expressão para histórias “leves” ou que não se enquadram, ordinariamente, em editorias específicas: política, economia…], Motta tem analisado uma boa quantidade de matérias jornalísticas em que a singularidade fica por conta do que a razão consideraria impossível de acontecer, mas que se apresenta no cotidiano das manchetes, como na seguinte: “Presente de Natal: filha ‘enterrada’ volta ao lar” [Opus cit., p. 114].
O estranho-insólito é o eixo a partir do qual o resto da história é narrado. Ele é colocado pelo jornalista logo na primeira frase do lide da matéria (um presente de Natal de arrepiar os cabelos), estimulando desde o início o efeito do espanto em relação ao episódio. O relato pode ser identificado com o que T. Todorov chama de fantástico-estranho […].
A morbidez foi e permanece como um dos cacoetes mais presentes no processo de seleção e hierarquização (newsmaking) dos fatos e histórias que compõem a pauta (agenda) dos conteúdos da penny press. E um dos lugares-comuns na edição desse tipo de ‘notícia’ é a montagem de uma charada que convida à leitura, mediante a curiosidade instaurada no título e subtítulo e a decifração do enigma à medida que o leitor percorre a estrutura da narrativa, sob a forma da pirâmide invertida [Na verdade, a moça, supostamente morta, estava desaparecida por seis meses, sofrera um acidente, esteve em coma e, um dia, para surpresa natalina, apareceu, de táxi, para espanto de sua mãe].
O fenômeno, hoje, no Brasil
Transportando no tempo esse fenômeno para a Brasília das décadas de 2000 a 2010, pode-se dizer que a fórmula básica se mantém, mas com alguns acréscimos. No ‘país do futebol’, uma visível ênfase nas matérias sobre jogos, campeonatos e vida de jogadores [No Aqui DF, seis das 28 páginas são dedicadas exclusivamente a esportes (futebol, em maior parte)]. No país das telenovelas, páginas de serviço com informações sobre a grade de programação e, evidentemente, muitas notas sobre a vida das celebridades do mundo da TV: um olho nas tramas ficcionais e outro nos detalhes da vida particular dos atores e atrizes. Um ingrediente, no entanto, sobressaiu nesse contexto de cultura tropical, não-puritana e permeada pela nudez típica das passarelas de carnaval [Uma nova tatuagem da pop-staré pretexto para uma foto sensual da mesma, mesmo que a tatuagem tenha sido no pulso (Aqui DF, p. 16, metade da página, em 18/02/13)]. Alguns desses tabloides apresentam invariavelmente uma chamada de primeira página com uma “modelo” nua ou seminua, remetendo para um “ensaio” fotográfico nas páginas interiores e sempre que possível apontando um detalhe picante sobre a intimidade da retratada, por exemplo, a revelação de que ela usa um piercing íntimo. [No Distrito Federal, onde situamos a nossa amostra empírica, o Jornal na Hora H!(R$ 0,25 – 24 páginas) é o veículo que oferece como atrativo diário uma stripper. E há até uma chamada-lugar-comum. Com uma ou outra alteração no texto, ela é aquele tipo de mulher que de “santinha” só tem a cara ou que de “anjinho” só tem o rosto. Tais apelos terminam com imperativos do tipo “Confira a gata” (na página 17).] É claro que esse tipo de permissividade erótica não é admissível na sociedade norte-americana. Com todo o seu liberalismo, um nu em primeira página só com a edição dentro de um plástico.
No Brasil, o tipo-ideal de penny press pode ser expresso pelo diário Super Notícia, de Belo Horizonte (R$ 0,25), o jornal de maior tiragem no país em 2010 e 2011. Uma simples visita ao portal do Super Notícia [Disponível em http://www.otempo.com.br/super-noticia/. Acesso em: 12 jan. 2014] permitirá ao leitor abrir uma enorme variedade de links que compõem o cardápio das retrancas e respectivos conteúdos. A principal manchete é dedicada predominantemente ao principal crime do dia. Crimes predominam nos links, especialmente os da editoria de Cidades.
É importante verificar que o jornalismo de centavos hoje presente nas capitais brasileiras ultrapassou em muito – tanto em variedade de conteúdos quanto em qualidade gráfica –, os jornais que outrora se enquadravam no gênero “jornalismo policial”. Embora os fatos da “crônica policial” continuem sendo a peça de resistência do “jornalismo popular”, os tabloides atuais proporcionam aos seus leitores (e internautas) um leque muito amplo de “variedades”, incluindo colunas (sete no caso do Super Notícia), palavras cruzadas, jogo de sete erros, horóscopo, seções dedicadas a novelas e matérias de serviço (dinheiro, empregos, concursos). O Super Notícia tem um link para notas de “Utilidade pública”.
É preciso ressaltar a existência de numerosos jornais gratuitos, mas que, a despeito da sua gratuidade e de serem tabloides, não se enquadram no gênero “jornalismo popular”, como é o caso do principal tabloide gratuito de Brasília, o Jornal da Comunidade (semanário do Grupo Comunidade, 130 mil exemplares) e dos diários Metro (16 páginas) e Destak (16 páginas), o primeiro (JC) marcado por matérias mais amplas e analíticas (política, economia, saúde, comportamento, mercado imobiliário) e por um significativo número de páginas dedicadas à alta sociedade da Capital brasileira. Com diversificada oferta de notícias curtas, o Destak também não traz conteúdos típicos do chamado “jornalismo popular”, em suas editorias de: Brasília, Brasil, Mundo, Seu Valor (economia), Vitrine Destak (mercado publicitário), Esportes, Diversão & Arte, Passatempo (cruzadas, horóscopo, frases, sudoku etc) e Seu Destak (notas de serviço).
Já o tabloide gratuito Coletivo (16 páginas, do Grupo Comunidade), possivelmente por ter como público focal passageiros do metrô e dos transportes coletivos, concorre claramente com o Jornal Na hora H! e com o Aqui DF (do grupo Diários Associados), mas sem a ênfase apelativas daqueles dois com relação a conteúdos policiais e eróticos. Enquanto o jornal Metro orienta a sua diferença para matérias informativas e de serviço, o Coletivo também difere dos jornais de R$ 0,25 e 0,50, mas sem deixar de ser “popular” na embalagem da leitura rápida e fácil dos conteúdos e mesmo sem ser tão apelativo quanto aos conteúdos policiais e eróticos não deixa de explorar as ‘fofocas’ do show business (retranca “Variedades”), coisas do tipo: “Melancia assume namoro com pagodeiro. A informação foi confirmada pela assessoria da dançarina”.
Brasília, cidade marcada pela rotina administrativa e consequente presença de grande número de usuários de repartições públicas, viu incorporar-se ao seu cotidiano a oferta de publicações gratuitas, que tornam menos aborrecida a espera pelo atendimento em órgãos como: Departamento de Trânsito, Procon, Receita Federal e outros. Evidentemente, que jornais com mulheres nuas e manchetes escabrosas não combinam com o decoro desses ambientes, mais formais e mais protocolares [Fotos de ‘modelos’ exibindo pronunciadas nádegas são rotineiras em boa parte dos tabloides de baixo preço, bem como manchetes redigidas de forma irônica e popularesca: “Mala levou bala”. Mala é gíria para bandido]. Um dos tabloides gratuitos mais antigos de Brasília, o jornal Lotus, dedica-se integralmente a temas e serviços ligados a saúde, terapias alternativas e esoterismo. Ou seja, nem tudo que é gratuito é apelativo, mas quase tudo que é barato é barato também na acepção de grotesco. Pode-se afirmar, no entanto, que os aspectos grotescos de diários como Jornal Na hora H! e Aqui DF, tampouco se alinham com os representantes do gênero em décadas anteriores. Estamos nos referindo especificamente ao prosaico Notícias Populares, bem caracterizado como imprensa marrom, e daquela associada ao comentário “se espremer sai sangue”.
O fenômeno na sua projeção teórico-deontológica
A imprensa com traços remanescentes do que foi numa era caracterizada como yellow press não permanece pura nas características dos seus primórdios, tendo passado a incorporar – conforme verificado neste trabalho –, novos valores e novos compromissos, para além dos valores-notícia estruturantes do processo de noticiabilidade e do paradigma da “teoria do espelho”, segundo a qual o jornalismo retrata a realidade e a ela se atém. A atividade jornalística conserva com zelo, pelo menos hipotético, o princípio basilar de que a imprensa livre faz parte da própria configuração de uma sociedade democrática, desempenhando mesmo o papel de um dos poderes republicanos, o quarto, ao lado do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Porém, nesse contexto democrático, a imprensa livre e plural também avocou a si um nível antes não concebível de envolvimento com os fatos, pela via do serviço ao público que ela presta, como instituição auxiliar do cidadão e da cidadania.
Mesmo em veículos que não explicitem ter abraçado como missão o seu compromisso com o cidadão e com a cidadania, a inserção constante de matérias de serviço e de utilidade pública funciona como uma forma de legitimação de um novo paradigma, aquele que se edificou como um movimento (e não propriamente um gênero) por parte de organizações jornalísticas do mundo inteiro, ou seja, o civic journalism (ou public journalism). E no Brasil, embora a ideia do “jornalismo público” não esteja associada a projetos específicos e financiados, como ocorreu e ainda ocorre nos Estados Unidos, também existe uma consciência cívica quanto ao vínculo dos veículos de imprensa com o cidadão e com o público. Emissoras de rádio e TV ligadas direta ou indiretamente ao Estado fazem questão de se identificarem como praticantes da “comunicação pública” e do “jornalismo público” como traço distintivo de outras qualificações: privado e governamental. Por sua vez, as redes que fazem parte do sistema privado de radiodifusão demonstram permanentemente em suas chamadas e vinhetas a convicção de que estão a serviço do público, como o faz a Rede Globo, com slogans do tipo: “Cidadania você vê aqui” e “Solidariedade você vê aqui”. Registra-se, assim, um movimento cruzado: os veículos de comunicação direta ou indiretamente ligados aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário lembrando que são públicos (e não propriamente estatais ou governamentais) e os veículos privados lembrando que são privados, porém públicos (na sua missão e na utilidade pública dos seus serviços).
Com relação à amostra que recolhemos e que orienta o presente texto [Por cerca de 90 dias – entre dezembro de 2012 e fevereiro de 2013 –, observamos edições dos jornais Aqui DF, Jornal na Hora H!, Metro, Destake Coletivo, especialmente os dois primeiros, por serem eles os que mais se aproximam do modelo penny presse que, hoje, pareceu-nos como prática do que estamos denominando de “jornalismo de centavos”], a dedução é de que mesmo o que é hoje equivalente à penny press de outrora adquiriu outros contornos e outras tentativas de aceitação social e do que poderia ser chamado de “justificativa ética do mundo”. O que poderia ainda ser chamado de imprensa marrom já não cabe dentro do antigo rótulo (que vem da década de 1950), pois embora ainda explore a fórmula antiga – principalmente o exagero dos aspectos emocionais dos fatos –, já não faz mais o estilo “se espremer sai sangue” e ainda procura oferecer seções e colunas de “serviço” e de “utilidade pública”.
Imprensa marrom e imprensa amarela são, portanto, valores semânticos diacrônicos, mais adequados à rotulagem de produtos que já não estão nas bancas e que fazem parte do mercado de outrora, da iconografia de outrora e de um contexto social de outrora. “Jornalismo popular” parece, no entanto, um eufemismo-substituto para “jornalismo policial”, expressão em desuso. De qualquer maneira, é inegável que, mesmo com alterações e inovações (acesso online), o fenômeno da penny press permaneceu e se fortaleceu. E o fator preço permanece como um traço marcante de identificação.
A indagação metodológica, no entanto, é a seguinte: se o “jornalismo de centavos” foi capaz de se ultrapassar e em alguns casos até de encontrar formas de sustentabilidade que não a venda em bancas (alguns tabloides são gratuitos) seria também competente para oferecer contrapontos, por exemplo, com relação aos conteúdos de violência? Poderia a yellow press de hoje assumir compromissos coerentes com as advocacias e mobilizações atuantes na sociedade civil e nas campanhas públicas? Entre os serviços e as iniciativas de utilidade pública que entraram para as suas páginas, haveria lugar para que o cidadão encontre nesses veículos algum valor-agregado, por exemplo, voltados para a difusão de uma cultura de paz?
Por enquanto, podemos encontrar não respostas claras, mas já alguns indícios, como as instruções que são passadas aos leitores sobre as melhores condutas a serem adotadas pelas pessoas ao serem surpreendidas pela violência. Um tipo de crime muito difundido nas capitais brasileiras é hoje o sequestro-relâmpago, cujo êxito (para os bandidos) depende em grande parte da falta de precaução das vítimas. Ir além da notícia estaria a requerer dos narradores dos fatos algo mais que o exagero típico do sensacionalismo jornalístico. Quando os cidadãos se encontram à mercê de criminosos, a atitude que se espera, de quem quer que seja, é, no mínimo, de solidariedade e de prescrição de cuidados preventivos. Estaria o “jornalismo de centavos” envergonhado de continuar simplesmente explorando a violência como matéria-prima mercadológica?
Há indicadores de que os jornais que claramente se enquadram na categoria da penny press de hoje começam a incorporar outros valores para além dos valores-notícia, de duas formas: à primeira estamos denominando de “valor agregado”. Ao fato jornalístico selecionado com base nos critérios tradicionais de noticiabilidade, agregam-se informações adicionais de contexto e de orientação e foco na cidadania, de modo que a notícia adquira elementos de utilidade pública e, com isso, transforme-se numa matéria de serviço. O segundo procedimento seria propriamente uma atitude deontológica e coerente com a clássica “Teoria da Responsabilidade Social da Imprensa” [A evolução da teoria da responsabilidade social culminou no relatório da Comissão para a Liberdade de Imprensa de 1947, apelidada de Comissão Hutchins, referência ao presidente da mesma. Inicialmente, as propostas dessa Comissão – e que estão no cerne dos pressupostos do civic journalism–, não foram bem recebidas pela imprensa em geral (PAULINO, 2009)], ou seja, aquela que pressupõe por parte dos veículos de comunicação um compromisso social, no caso da violência, não se limitando aos fatos no que eles têm de atrativo emocional e mercadológico, mas, sobretudo, no que deles pode ser tirado como aprendizado e prevenção.
Um paralelo dessa possível responsabilidade social da imprensa no trato dos fatos jornalísticos relacionados com violência pode ser traçado, comparativamente aos procedimentos da justiça restaurativa, cujo foco recai prioritariamente na vítima e não no agressor; nos ganhos pedagógicos por parte dos atores envolvidos (infrator, vítima, famílias, comunidade, segurança pública e políticas públicas e sociais) em lugar da simples realização do desejo de punição ou, na falta deste, no realce da frustração do cidadão e da sociedade quando prevalece a impunidade e o sentimento de insegurança.
Conclusões
Há pelo menos três séculos que se estabelece uma correlação entre democracia e liberdade de imprensa, princípio apregoado por todos os próceres libertários e presente em todas as constituições. No entanto, a partir do início do século XX desenvolveu-se a consciência de que a liberdade de expressão (speech), de imprensa (print) e de publicidade de ideias (press) exigia uma contrapartida de responsabilidade, surgindo daí a Teoria da Responsabilidade Social. [Em contraponto às “teorias libertárias”. E enquanto o louvor recaía ao “distanciamento” do narrador em relação aos fatos, com o advento do civic journalismo paradigma mudou para: “o jornalismo público recomenda uma tarefa diferente: operar bem as ligações, especialmente a ligação fundamental entre o jornalista e os cidadãos”. Cf. ROSEN, Jay. “Tornar a vida pública mais pública: sobre a responsabilidade política dos intelectuais dos media”. Em: TRAQUINA, Nelson e MESQUITA, Mário. Jornalismo cívico. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, p. 55. Outra mudança de paradigma fundamental exige levar-se em conta que o surgimento do conceito de “democracia participativa” em contraponto à clássica (porém sujeita ao descolamento entre eleitor e eleitos) “democracia representativa”.] A partir do final da década de 1980, surgiu nos Estados Unidos e se difundiu por vários países um movimento intitulado civic journalism (também identificado como public journalism), tendo como principal proposta o engajamento das redações com os desafios das comunidades. A motivação para votar e as mobilizações em torno do voto consciente estão no âmago da ideia do “jornalismo público”.
Não existe, contudo, um consenso fechado em torno da ideia de que a imprensa deva ir além dos fatos, comprometendo-se com as soluções dos problemas sociais por ela tematizados. Ainda prevalece por parte dos mais expressivos jornais do mundo – The New York Times, Washington Post, The Times e Le Monde, entre outros –, a firme convicção de que reportar os fatos com precisão e densidade já é uma tarefa digna de um dos mais árduos trabalhos de Hércules. [Em dado momento, o movimento intitulado civic journalismfoi considerado pela “grande imprensa” norte-americana, como se fosse uma “cruzada”, o que, por si, gerou uma reação no sentido de que a imprensa livre e independente deve se manter fora de “cruzadas”.] A noção seguida por esse bloco é a de que a imprensa deve parar no limite de onde entram os políticos e governantes, não sendo nem papel nem dever do jornalismo arvorar-se à gestão pública da vida pública.
Uma outra corrente, no entanto, tem buscado se afirmar, com uma pregação quase apostólica, em favor de uma imprensa que não separe o seu trabalho da “vida pública”, um corolário que em muito se assemelha à concepção de vita activa [O exercício da cidadania não pode ser passivo, sinônimo de omissão. Para Hannah Arendt, cidadania e vida ativa, ou seja, participante, são uma coisa só], de Hannah Arendt. Marco delimitador de uma polaridade de pensamentos quanto a papel e dever da imprensa foi a famosa polêmica entre Walter Lippman (1889-1974), que defendia um “governo das elites” (certamente, com apoio da imprensa) e John Dewey (1859-1952), que defendia a democracia como um sistema participativo, nele atuando de forma integrada e como protagonistas as comunidades e os veículos de comunicação. As ideias de Dewey foram matriciais para o surgimento do civic journalism e seus numerosos pensadores, entre eles, James Carey, Jay Rosen, Edmund Lambeth e Davis Merritt, este último um dos mais profícuos autores e militantes do movimento, para quem jornalismo e democracia são “simbióticos” (TRAQUINA; MESQUITA, 2003, p. 12)
Tendo em vista os comentários de Merritt, ou o yellow journalism e sua correspondente yellow press encontram meios de agregar valor (serviço ao público) ao seu ‘trabalho’, ou permanecerão estáticos, se servindo da sociedade e da vida pública literalmente pelo seu lado negativo (numa analogia para com o processo fotográfico), quando o seu melhor desempenho poderia se dar pelo lado luminoso, literalmente pelas luzes do Esclarecimento. Alguns indícios de que já ocorre uma reversão de expectativas foi o que pudemos observar numa verificação empírica de como se dá em pleno século XXI um modo de produção jornalística que remonta os primórdios do século XIX e que, em matéria de preço por exemplar, permanece na escala dos centavos ou até faz parte de outro fenômeno, que é o da mídia gratuita, mas no que se refere à sua função social tem um potencial imenso por se cumprir, tanto pela sua expressão, num momento em que o restante da imprensa é recessivo, quanto pela própria expansão das classes populares no Brasil. [Desde a década de 1990 que os governos federais que se sucedem no Brasil gostam de ostentar estatísticas segundo as quais houve sucessivo ingresso das classes D e C na aquisição de moradias e consumo. Não por acaso, o ingresso dos imigrantes e da classe operária no mundo da leitura foi um dos motivos do surgimento do fenômeno da penny press.]
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Luiz Martins da Silvaé professor associado da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília – atuando na graduação, pós-graduação, extensão e pesquisa. É jornalista, mestre em Comunicação, doutor em Sociologia. Realizou um estágio pós-doutoral junto ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da UnB com o tema “Comunicação, mobilização e cultura de paz” (2012); Fernando Oliveira Paulinoé professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, atuando na graduação, pós-graduação, extensão e pesquisa. Jornalista, mestre e doutor em Comunicação. Pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom), Membro da Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi), Coordenador do Programa Comunicação Comunitária e Diretor Administrativo da Associação Latino-Americana de Investigadores da Comunicação (ALAIC)