Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Papel de centroavante não é o de fazer gols

Dilma Rousseff não para de nos surpreender. Agora disse que o papel da imprensa não é o de investigar, mas, sim, divulgar as informações que produzem os órgãos do governo.

Minha surpresa é maior ainda. Dilma apresentou a Lei de Acesso à Informação, depois de longo trabalho da Associação Brasileira do Jornalismo Investigativo. A lei foi impulsionada pelo trabalho do jornalista Fernando Rodrigues, que sugeriu a criação de uma frente parlamentar, monitorou todas as reuniões da comissão da Câmara que analisou o projeto, organizou seminários e trouxe gente de vários países para falar sobre o tema. Por que tanto empenho dos repórteres na aprovação de uma lei de acesso? O próprio nome de sua entidade é uma pista que Dilma não poderia desprezar: jornalismo investigativo.

Dizer que a imprensa não deve investigar é o mesmo que dizer que um centroavante não deve fazer gols. É uma frase absurda até para quem não conhece bem o futebol. E absurda para quem conhece o papel histórico da imprensa. A geração de Dilma acompanhou o escândalo do Watergate, que encerrou a carreira de Richard Nixon. Ela sabe disso e usou o tema para dizer que sua frase foi interpretada erroneamente. Com um pedacinho de papel na mão, ela tentou consertar o desastre.

Poderia passar o dia citando casos de importantes investigações da imprensa. Prefiro mencionar os casos de governos que pensam que esse não é o papel dos jornalistas. Vladimir Putin, por exemplo, também acha que o papel da imprensa não é investigar. A jornalista Anna Politkovskaia resolveu investigar o trabalho das tropas russas na Chechênia e foi assassinada. Sua morte chamou a atenção do mundo para a repressão contra a imprensa na Rússia.

A China expulsa correspondentes estrangeiros com frequência, ora por tentarem entrar em áreas proibidas no Tibete, ora por mencionarem a fabulosa riqueza pessoal dos burocratas que dirigem o país. E o jornal cubano Granma jamais vai investigar de forma independente um desmando do governo porque o castigo é desemprego, prisão e até pena de morte.

Alternância democrática

O jornalistas brasileiro Vladimir Herzog foi morto sob tortura durante o regime militar não tanto porque investigou, mas talvez porque só desconfiasse ativamente das notas oficiais da ditadura. No governo do PT não se persegue ou mata jornalista, dirão seus defensores. Mas não deixa de ser inquietante suspeitar que isso não se faça agora só porque a correlação de forças não permite. Um dirigente petista chamado Alberto Cantalice fez uma lista de nove jornalistas que considera inimigos, preocupando as entidades do setor aqui e fora do Brasil.

A frase de Dilma pode ser considerada um ato falho. Os intelectuais que se mantêm fiéis ao esquema, apesar das evidências de sua podridão, sempre vão encontrar uma forma de atenuar essa barbaridade. E os marqueteiros, um pequeno texto para convencer de que ouvimos mal o que Dilma disse. Os ato falhos, tanto em campanha como fora dela, são extremamente didáticos. No caso, a frase de Dilma revela com toda a clareza o pensamento autoritário da presidente: cabe ao governo produzir as informações e à imprensa divulgá-las ou até criticá-las, o que os jornalistas não podem é buscar os dados por conta própria.

Numa célebre intervenção sobre a espionagem americana, Dilma contou ter dito a Barack Obama: “Quando a pasta de dente sai do dentifrício, não pode mais voltar”. Certas frases, quando escapam, têm o mesmo destino do creme dental: não podem voltar para o tubo, que é o artefato que Dilma queria mencionar ao dizer dentifrício. Espero que Obama a tenha entendido, com a mediação dos intérpretes. Creio que a entendo muito bem quando diz que o papel da imprensa não é investigar.

O governo petista pôs o Congresso de joelhos e alterou substancialmente a correlação de forças no Supremo Tribunal. Ele considera que a ocupação de todos os espaços vai garantir-lhe não só governar como quiser, mas o tempo que quiser. Porém a imprensa e as redes sociais ainda escapam ao seu controle. E creio que escaparão sempre, pois o País está dividido. O que mantém tudo funcionando é a existência de gente curiosa, que lê, troca informações e gosta de ser informada por órgãos independentes do governo. Mesmo se Dilma for reeleita, com sua truculência mental, uma considerável parte do Brasil que rejeita os métodos e o discurso do PT continua por aí, cada vez mais forte e mais crítica.

Apesar da alternância democrática, certos governos podem durar muitos anos. Mas creio ser impossível se perpetuarem quando têm a oposição das pessoas que prezam a liberdade.

Sem medo

Liberdade de quê?, perguntariam. Consumir mais, melhorar a renda não ampliam a liberdade? Ao se impor na Franca, o socialismo de Jean Jaurès e, mais tarde, de Léon Blum dizia que a justiça política tinha de se acompanhar da justiça econômica. Blum era um fervoroso e racional defensor da República. O PT inventou que seus opositores não gostam de pobre em aviões ou em shopping centers, que a oposição ao seu governo é fruto de intolerância classista.

Exceto um ou outro idiota, ninguém é contra a presença de pobres em aeroportos ou shoppings. O PT deturpou a ideia de República. Em nome de melhorias econômicas, armou o maior esquema de corrupção da História e agora flerta abertamente com a supressão da liberdade de imprensa. Ele usa uma aspiração republicana para sufocar as outras e seu líder máximo, amarfanhado, se veste de laranja para defender de inimigos imaginários a Petrobrás, que o próprio governo assaltou. Suas farsas estão mais grotescas e os atos falhos, mais inquietantes.

Sou do tempo do mimeógrafo. Ainda que consigam devastar a imprensa e proibir a internet, publicações clandestinas seguirão contando a história. Não faremos comissões futuras para investigar a verdade. Vamos conquistá-la aqui e agora, porque, como diz Dilma, a pasta saiu do dentifrício, ou o dentifrício saiu da pasta. Só não vê quem não quer ou é pago para confundir.

Estranho, mas não tenho nenhum medo de governos autoritários. Apenas uma sensação de tristeza e preguiça por ter de voltar a esses temas na segunda década do século 21.

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Fernando Gabeira é jornalista