Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Para cultivar o senso crítico

O alvoroço em torno dos nomes cotados para compor ministérios e secretarias importantes é rotina nos períodos que vão do resultado das eleições até a posse ou, no caso, o início de um segundo mandato. Especula-se à vontade para alimentar as especulações no cassino financeiro. Exige-se urgência em nome do apaziguamento do “mercado”. Não se indaga sobre as expectativas dos movimentos sociais: é como se não existissem, não fossem reagir, ou essa reação não tivesse relevância.

A turbulência que marcou a reta final da eleição, com a famosa capa da Veja que pretendeu impedir a vitória de Dilma Rousseff e, mesmo constrangida ao direito de resposta, forneceu combustível para o início de um movimento pelo impeachment da presidente, faria prever a adoção de opções conservadoras para apaziguar a oposição. Assim, por mais incoerente que seja em relação às promessas de campanha, e por mais deplorável que possa ser o comportamento de acenar com uma coisa e realizar outra – o chamado “estelionato eleitoral”, que só contribui para o descrédito da política partidária –, não deveria causar surpresa a escolha de um nome do “mercado” para a Fazenda. Já a indicação, dada como certa, da líder ruralista para a Agricultura é algo que passa dos limites.

Suposições

Colunistas ligados ao PT desdobram-se na tentativa de explicar essas opções. Concentrando-se na escolha para o Ministério da Fazenda, Paulo Moreira Leite (23/11) compara o momento atual ao das vésperas do golpe de 1964 (ver “Dilma tenta evitar armadilha de Jango“). As muitas ressalvas que ele próprio apresenta a essa analogia sugerem, entretanto, que se trata de buscar uma justificativa a partir de um fantasma.

Sem tratar do quadro de ministeriáveis, Luís Nassif (22/11, “Juiz Moro monta a segunda garra da pinça do impeachment“) apontou em seu blog a existência de uma articulação para vincular a corrupção que vem sendo apurada no processo desencadeado pela “Operação Lava Jato”, sobre corrupção na Petrobras, e as contribuições para a campanha de Dilma. Isso alimentaria a hipótese de impeachment, aliás ilustrada na capa do Globo de domingo (23/11), pelo efeito dominó que começaria com a derrubada do doleiro e chegaria até a presidente: seria, no mínimo, uma perfeita representação do wishful thinking do jornal, claramente empenhado nessa causa, como esteve na época do mensalão, quando o alvo era Lula.

Na contramão

Em suma, o novo governo estaria adotando velhas soluções conservadoras – e até reacionárias – para conter ao menos parte das forças de oposição e se proteger contra ataques mais radicais. Se for assim, caberia perguntar qual a vantagem de vencer as eleições, se, acuado, o vencedor acabará agindo como o adversário.

Pelo contrário, Janio de Freitas, na Folha de S.Paulo, no domingo (23/11), sintetizava a trajetória dos escolhidos – ressalvando a falta de confirmação oficial de Kátia Abreu para a Agricultura – para concluir que “o primeiro movimento do novo governo parece feito em marcha a ré”. No dia seguinte, Ricardo Melo lembrava a ressurreição da militância petista na reta final da campanha e seu papel na sofrida vitória, incompatível com as anunciadas indicações para os ministérios. E reiterava:

“Longe de qualquer observador equilibrado esperar rupturas bruscas, mas sim de enxergar um horizonte que mantenha e aprofunde as conquistas sociais. Salvo pela existência de uma bem guardada carta na manga, impossível de se vislumbrar até agora, o novo governo vem andando na contramão do que prometeu. Um jogo mais do que perigoso”.

Fazer escolhas

Momentos de indefinição sempre foram campo fértil para apostas e especulações. Por isso é mais ainda necessário buscar análises consistentes para formar a própria opinião. Não se trata, evidentemente, de sugerir que o leitor deva contextualizar e checar as informações que recebe, não só porque esta sempre foi a tarefa dos jornalistas – sejam repórteres ou articulistas – como porque o cidadão comum não tem a menor condição de checar o que quer que seja, simplesmente porque não tem fontes. Sabe do que acontece por intermédio da imprensa, e as informações que recebe estão filtradas pelos interesses que orientam o noticiário, como se demonstra sistematicamente aqui mesmo neste Observatório. Isso condiciona a nossa hipótese de compreender o que está em jogo.

Mas por isso mesmo é preciso encarar de forma crítica o que sai nos jornais. No caso dos artigos de opinião, em particular, tentar avaliar a qualidade dos argumentos. Em síntese: cultivar a capacidade de reflexão, o que exige um tempo incompatível com o automatismo que prevalece nas redes.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)