Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os donos da bola não sabem jogar

Um amigo, repórter que cobria futebol, conta as experiências de bastidores que teve ao acompanhar demissões de treinadores nos principais times de São Paulo. Diz ele que, para um treinador perder o cargo, por mais vitorioso que seja, basta discordar do presidente do clube sobre algum jogador ou criticar a falta de planejamento da instituição.

Em algumas redações, o “método” não é muito diferente. Menos ainda com a visão binária resultante do maniqueísmo político-partidário da disputa PT x PSDB, que contamina os ambientes de produção jornalística nos últimos anos, quando o debate aprofundado a respeito da qualidade da informação vem sendo cada vez mais interditado e substituído por improvisos.

Sentimos os efeitos crescentes disso nos últimos meses na Rede Brasil Atual (RBA) até termos sido demitidos, em 18 de novembro, após defendermos intransigentemente o projeto editorial que guiou os rumos do site pelos últimos dois anos e meio. Quatro profissionais perderam o emprego: o editor-chefe, dois editores e o repórter especial. Nossas dispensas ensejam uma oportunidade valiosa para discutir jornalismo.

A Rede Brasil Atual surge a partir da criação da Editora Gráfica Atitude, que passa a publicar a Revista do Brasil, em 2006. Três anos depois, nasce o site. Eram criações financiadas por sindicatos da CUT em reação ao controle dos meios de comunicação por discursos hegemônico-tradicionais, ao domínio do mercado e de interesses financistas sobre as redações, com a intenção de dar voz à classe trabalhadora, tendo como parceiros a Rádio Brasil Atual e a TV dos Trabalhadores (TVT).

Sem política comercial

Em 2012, com uma mudança na chefia de redação, a RBA passa a mirar um jornalismo aprofundado. O número de reportagens aumenta. As pautas direcionam os profissionais às ruas, lugar onde as histórias ganham peso e reforçam o sentido da sua existência. Fundamental, o contato com as múltiplas realidades faz o site crescer. O noticiário é ancorado na agenda dos movimentos sociais, com produção de material de fôlego, textos enriquecidos com entrevistas, documentos, variadas fontes.

Com erros e pontos a serem aperfeiçoados, vieram acertos importantes: a cobertura das manifestações de junho de 2013, da última greve dos metroviários, da escassez de água em São Paulo, da agressão e prisão de manifestantes, da operação urbana nas Águas Espraiadas, do trabalho degradante no Instituto Butantan e da luta dos povos Guarani espremidos no território paulistano. Esses são só alguns dos exemplos do nosso compromisso com o jornalismo de interesse público.

O legado desse trabalho foi uma página cuja qualidade multiplicou acessos, bateu recorde de visitantes em outubro de 2014 e a marca de 100 mil seguidores no Facebook em novembro. A cobertura eleitoral deste ano chegou a três vezes mais pessoas que a cobertura eleitoral de 2012 e a quatro vezes mais que a de 2010. Se ocupava a posição 2.840 entre todos os sites do país no começo do ano, segundo o medidor de tráfego Alexa, o site iniciou novembro na condição de número 1.168.

A RBA serviu para inspirar e alimentar iniciativas jornalísticas igualmente importantes na esquerda. De um lado, enriqueceu o conteúdo de veículos como Sul21, Fórum, Brasil de Fato e SpressoSP. De outro, foi um banco de pautas e fontes para sites e jornais de recorte progressista e da mídia tradicional. Tudo isso sem trabalho específico de divulgação, sem estratégias de marketing, sem parcerias institucionais, sem ações para promover a marca, sem, incrivelmente, uma política comercial.

A visão binária

Fizemos o que fizemos limitando-nos a perseguir e defender os bons princípios do jornalismo. Nada de objetividade ou imparcialidade, como alardeiam os jornais, revistas e canais de televisão mais parciais e subjetivos do país, mas, sim, seriedade, reportagem, respeito à veracidade dos fatos, compromisso com o interesse coletivo e os direitos humanos, discussão incansável de pautas, combate às injustiças e desigualdades, ampliação de direitos sociais e civis.

Curiosamente, os bons resultados provocaram um acirramento interno. Logo depois das eleições, momento cansativo para todos, o coordenador-geral da Rede Brasil Atual nos informou que o projeto estava “sob reavaliação”, algo que já havia surgido da boca de seu auxiliar. Na “reavaliação”, segundo eles, ocorreriam “mudanças de perfil editorial”, que implicariam “demissões”. Porém jamais se delineara exatamente quais seriam as alterações nem quais seriam seus objetivos. Tudo era muito vago.

A coordenação também manifestou nutrir visão negativa do jornalismo que praticávamos, com o entendimento de que estava “muito pesado”, que necessitava de mais “leveza”. As chefias se negavam a colocar um projeto sobre a mesa e nenhuma palavra nos chegava em bases claras. Ao contrário, os defensores das alterações advogavam que o realinhamento desejado se processaria no dia a dia, “na conversa de boteco”, ignorando a discussão com os trabalhadores que produziam o conteúdo e negligenciando, mais uma vez, o debate fundado em argumentos sólidos.

Foi então que a visão binária saltou aos olhos. O debate só ganharia corpo nos campos teórico e prático de um dos lados, porque do outro o interesse estava contaminado pelo sentimento que atravessou muitas redações brasileiras nos últimos tempos, culminando na eleição presidencial deste ano. Em linhas gerais, o que se materializou na RBA foi a a ideia reducionista de que ou se é a favor do governo, ou se é inimigo, até golpista. Como se o mundo tivesse uma só cor, como se o jornalismo fosse apenas uma folha em frente e verso, como se todos estivéssemos obrigados ao Fla-Flu.

Pautas sem fôlego

Assim, se do lado da mídia tradicional abunda a predisposição em criticar o partido que administra o governo federal sem critérios que mirem o republicanismo, o receio de perder posições individuais colocou na berlinda o jornalismo de um veículo que procurava sustentar posturas progressistas, para substituí-lo pela tal “leveza”, trocá-lo por um tratamento superficial da notícia para atrair a leitura fácil, o que se traduz em “reportagens” sobre serviços, sempre com textos rápidos, voltados a repercutir nas redes sociais, em busca cega por curtidas e compartilhamentos.

A quem prefere colocar a autopreservação como objetivo máximo e minimizar a capacidade de intervenção social do jornalismo, não basta que o contraponto à chamada “imprensa golpista” já venha sendo cumprido pelos autointitulados “blogueiros progressistas”, uma bem-vinda iniciativa que, graças à internet, pluralizou a cartelizada opinião pública brasileira, mas que ainda não conseguiu avançar para além do comentarismo e da crítica ao way of life dos grandes meios de comunicação.

Aos que defendem a “leveza”, era necessário que a RBA mudasse de rota, já que, nos últimos dois anos e meio, decidiu seguir outros caminhos, renegando o terreno meramente opinativo para se lançar à ingrata e recompensadora tarefa de fazer as reportagens que – tanto se alardeava na própria esquerda – os veículos tradicionais deveriam fazer.

E os defensores da mudança de rumos, dos textos curtos, das pautas sem fôlego, são os mesmos que querem mais “opinião” e menos reportagens. São os que desejam a polêmica pela polêmica, não o jornalismo que busque as histórias concretas da rua ou a responsabilidade da boa apuração documental.

Crise ética e moral

Em termos ideais, gostaríamos de dizer que a RBA era plenamente independente. Em termos reais, sempre soubemos que isso era impossível porque um veículo financiado por sindicatos filiados à CUT tem lá suas amarras. A despeito disso, conseguimos praticar um jornalismo que sabia criticar governos, independentemente de coloração partidária, e também elogiá-los, quando se aproximavam dos princípios que consideramos importantes. Isso construiu uma reputação sólida dentro de um segmento da sociedade. Fazíamos jornalismo. E ponto.

Por isso, fomos “intransigentes” contra as mudanças. Sabíamos que, com uma equipe pequena, sairiam perdendo as reportagens sobre direitos humanos e mobilização social. Ou seja, que se desmontaria a linha-mestra do projeto, bem-sucedido não só do ponto de vista dos números, mas, também, acertado na opção por um jornalismo interpretativo dos temas cotidianos em política e economia. Acertar essa mescla é algo potente, mas que leva tempo. Estamos convictos de que estávamos no caminho certo.

Defenestrados da RBA, como fomos, seguiremos na luta pela boa apuração, qualidade da informação e honestidade sobre a posição do jornalista no mundo. Queremos, firmemente, que essas questões não sejam nubladas pelo binarismo que ameaça o jornalismo, pela linha em que algumas chefias objetivam tirar proveito político do trabalho de quem realmente faz a redação funcionar.

Desejamos que exista quem atue jornalisticamente em favor da diminuição das distâncias entre as classes socioeconômicas do país. Que haja repórteres, editores – sem linha divisória, sem aquários – que lutem por direitos, não por privilégios. E, por fim, que seja redobrada a força quando isso ocorrer em uma empresa mantida com recursos diretamente descontados do salário de uma parte da população, trabalhadoras e trabalhadores sindicalizados, o que agrava a ausência de democracia e transparência.

Junto à alardeada crise no modelo de negócio dos meios de comunicação, há uma crise mais grave, de ordem ética e moral, que coloca o jornalismo em segundo, terceiro ou quarto plano frente aos interesses de sindicatos, partidos, empresas, enfim, dos grupos de poder que o financiam. E que provoca passaralhos em retaliação a quem discorda dos donos da bola. Mesmo que os que realmente trabalham jornalisticamente tenham todos os argumentos. Contra essa espécie de castração intelectual, nossa postura firme e intransigente de luta também seguirá.

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João Peres, Moriti Neto, Diego Sartorato e Tadeu Breda são jornalistas